CAPÍTULO 6 - HERÓI DE ARAQUE (OU 'FALA ELE, NÃO O SENHOR')
Os capítulos mais recentes desta minha saga estão curiosamente bem amarrados, embora eu não estivesse preocupado com isso quando comecei a escrever essas risíveis (e 'choráveis'!) memórias. É um fatalidade, a meu ver: um capítulo está 'puxando' o outro. Como não planejei nem esquematizei nada, essas memórias são um exercício de anamnese - estou desencavando tudo o que posso para contar ao leitor hipotético.
Então eu falava antes sobre meu status de universitário no 'Reino', bem como da nossa patética defesa 'racional' da fé que apregoávamos. Bem, nós só fazíamos do nosso jeito (um jeito bem antipático) o que milhares também faziam e já haviam feito antes na história do cristianismo: tentar convencer o mundo de uma história delirante, mórbida, inconcebível, contida na segunda parte uma de coletânea de textos - e supostamente anunciada na primeira metade desta mesma coletânea.
Eis a eterna contradição da apologia, pela razão, do que só pode ser aceito por meio da fé. No cristianismo, essa longa tradição de 'apologéticos' parece ter sido iniciada por Paulo de Tarso, o 'apóstolo Paulo' - que não estava entre os 12 seguidores iniciais mas teria se convertido após ver o próprio Jesus (relato em 'Atos dos Apóstolos', Novo Testamento). De judeu fanático, perseguidor de cristãos, Paulo se tornaria um igualmente fanático cristão, liderando milhares e sendo um dos principais disseminadores da nova doutrina por grande parte do mundo então conhecido.
A história e o pensamento do apóstolo Paulo são relatados em Atos e em diversas cartas supostamente escritas por ele - há controvérsias quanto à autoria de algumas - para as comunidades cristãs de sua época (primeiro século depois de Cristo). Se o leitor hipotético quiser, pode ter fácil acesso a essas informações na internet e na própria Bíblia. Este breve relato é só pano de fundo para o que eu quero contar: como as idéias deste cara entraram - e saíram pra nunca mais voltar - da minha vida de ex-salvo.
O povo de Deus tinha um intelectual
Em matéria de palavrório bem articulado, Paulo foi o maioral da igreja primitiva, superando o simplório Pedro e o místico João ao dar um verniz filosófico à sua teologia cristã. Fariseu bem instruído, sabia advogar suas idéias de maneira eloqüente, o que impressiona de cara qualquer um que esteja ávido por fundamentar sua fé no cristianismo. Não à toa, Paulo era celebrado na minha igreja como uma mistura de santo e gênio. Nos estudos bíblicos que recebíamos ao conhecer o 'Reino' - e que reproduzíamos ao nos tornarmos discípulos -, a primeira passagem comentada era de Paulo:
"Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2a Carta a Timóteo 3: 16-17)
O primeiro contato com estas e outras passagens seria consolador e revigorante para mim, que queria 'viver a verdade'. Tinha sido educado por meus pais a dar crédito à Bíblia, a acreditar que existia um plano divino e que Jesus era o salvador da humanidade, mas nunca havia refletido com muito cuidado sobre nada disso até passar a ler diariamente as escrituras - em especial, o Novo Testamento. Os textos de Paulo pareciam a explicação ideal do que era ser um cristão e o que seria a salvação dada pelo cabeludo da Palestina. O povo de Deus tinha um intelectual em quem se mirar.
Os quatro Evangelhos, naturalmente, eram muito citados pelos discípulos do 'Reino'. Mas as cartas dos apóstolos - e em especial, as de Paulo - serviam como uma explicação, um suposto esclarecimento da 'Boa Notícia' e de como o crente deveria proceder no seu relacionamento com Deus, com os irmãos e com os 'perdidos'. Era muito comum que um irmão te mostrasse uma escritura para te convencer de alguma coisa - normalmente, alguma coisa chamada 'seu pecado'. E lá estava uma escritura do 'apóstolo dos gentios' em destaque.
Segui a sugestão de Paulo e virei um ávido leitor da Bíblia, querendo buscar a instrução, a justiça, enfim, 'a verdade'. Viria então a me deparar com um grande problema: se a doutrina cristã me ensinaria a verdade, essa verdade deveria fazer sentido, seria evidente, compreensível. Mas em vez de encontrar evidências e argumentos claros, ficava cada vez mais óbvio que confiava minha vida a um ajuntamento de falácias - das quais Paulo era só mais um hábil artesão. De minha maior referência em pensamento cristão, o apóstolo se tornaria um irritante professor de bobagens.
Da empolgação à desilusão
Não foi por causa de Paulo que abandonei a fé; ele não está com essa bola toda. Na verdade, o que me faz escrever este maçante relato é justamente isto: Paulo era só mais uma homem tentando provar o improvável. Dizem os controversos relatos históricos que ele tinha talento para a liderança e para o embate de idéias, determinado, corajoso. Há também quem postule que ele era uma espécie de mandão, carrerista e homossexual enrustido, irascível e intolerante. O que eu fui descobrindo, enquanto minha fé se esvaía, é que Paulo não tinha nada de útil a dizer a quem quer justificar sua fé.
Através dos escritos de Paulo eu supostamente entenderia que a humanidade se tornou inimiga de Deus por causa do pecado de Adão e Eva, sendo Jesus a solução divina para a reconciliação; saberia também que, embora criados à imagem e semelhança de Deus, os seres humanos eram maus e revoltados contra o Senhor; seria alertado que o homossexualismo é uma conseqüência da perversão da humanidade; e que a mulher deveria se submeter ao homem, pois Eva veio depois de Adão e foi ela quem caiu primeiro em transgressão e induziu o sujeito a pecar. Enquanto minha fé bastava, o discurso do apóstolo era um adorno elegante; quando o conflito com a minha racionalidade se intensificou, seus ensinos não foram mais que letra morta.
Como eu poderia aceitar aquelas explicações sem - como diria o próprio Paulo - 'queimar minha consciência'? Enquanto ele dizia que Deus se revelou claramente ao homem e que este preferiu revoltar-se (vide Romanos, por exemplo), não via sinal nenhum dessa evidência sem mentir pra mim mesmo; enquanto ele fazia explanações sobre Adão e Eva como seres reais, eu não podia mais fingir que a teoria da evolução não tinha fundamentos sólidos; enquanto ele pixava os homossexuais, eu me perguntava por que Deus então os fez assim para depois condená-los; enquanto o apóstolo vomitava misoginia, eu via mulheres capazes se submetendo a homens idiotas na igreja (e em todo o planeta).
Paulo me garantiu que toda a escritura é divinamente inspirada e um norte para quem quer 'agradar a Deus', mas ao lado de boas lições e bons conselhos eu também lia histórias implausíveis, estúpidas e vergonhosamente imorais - das quais não podia discordar nem duvidar, sob pena de 'heresia'. Era gritante que eu estava elevando uma coletânea de discursos humanos a um grau divino que não tinha o menor cabimento. Quanto a isto, o 'apóstolos dos gentios' diria uma das maiores verdades da minha vida cristã: "porque a palavra de Deus é loucura para os que se perdem..." (1 Corintios 1:18).
O apóstolo instruído segue neste mesmo capítulo - a exemplo de outros textos seus - criticando os judeus que pedem sinais e os gregos que pedem sabedoria: em resposta a isto, evidentemente, ele responde com o fanatismo arrogante de quem teria uma procuração divina para declarar os homens culpados de não crer por não haver nenhum sinal e nenhum sentido nesta história da salvação. No fim das contas, Paulo se exalta, se gaba, amaldiçoa, ameaça - faz enfim o que qualquer pregador incompetente precisa fazer para causar impacto na ausência de provas e de razão.
Depois de Paulo, vieram muitos outros - verdadeiros discípulos do apóstolo instruído. Você os encontrará com muita facilidade na televisão, nas livrarias, na internet; uns são elegantes e se passam por sérios pensadores, mas outros apenas encarnam o lado histérico do meu herói de araque. Toda a teologia misógina, pseudofilosófica, liberticida e que julga o gênero humano um traste asqueroso (criado por um Deus infalível) - desde Santo Agostinho e outros 'padres da igreja' até o pastor semianalfabeto da esquina - deve a Paulo o seu desenvolvimento e a lamentável adesão de tantas almas aflitas.
Às vezes, quando lembro da bela passagem de 1 Corintios 13 ('ainda que falassa a língua dos homens e a língua dos anjos...), em que o amor (ou a 'caridade') é exaltada acima da fé, estranho que tenha sido um pensamento de Paulo. Ele foi capaz de dizer coisas assim, mas tudo de ruim que defendeu parece ter sido sua herança maior. Em certa passagem, ao falar de casamento numa de suas cartas (talvez aos coríntios ou aos romanos), o apóstolo fez a seguinte ressalva: "falo eu, não o Senhor". Como ele teria feito bem à humanidade se tivesse posto esse adendo antes de cada idéia estapafúrdia que defendeu!