sábado, outubro 29, 2011

Mensagem dos que matam, oprimem e discriminam em nome da fé

DEUS QUER SANGUE

O mundo é dividido
entre os irmãos da fé
e os nossos inimigos.

Verdade é um abrigo
que outorga proteção
aos homens escolhidos.

Hão de adorar, ou hão de perecer.
Vão revelar, não se pode entender
(que Deus quer sangue).

A cruz e o crescente,
O karma e a samsara,
a estrela reluzente.

Os templos destruídos,
e sobre a tua cova
um novo templo erguido.

Há de imperar, há de converter!
Vai triunfar - e escravizar você.

Vejam os sinais, contemplem o poder!
Os infiéis merecerão sofrer,
Pois Deus quer sangue.

Os ritos, escritos, retratos
A espada da Lei,
Estados, hiatos,
A flâmula infame erguei!

O mundo é dividido
entre os irmãos da fé
e os nossos inimigos.

Verdade é um abrigo
que outorga proteção
aos homens escolhidos.

Hão de adorar, ou hão de perecer.
Vão revelar, não se pode entender
(que Deus quer sangue).

Vejam os sinais, contemplem o poder!
Os infiéis merecerão sofrer,
Pois Deus quer sangue.

sábado, outubro 22, 2011

"Memórias de um ex-fanático", capítulo 7

CAPÍTULO 7 - ENGARRAFAMENTO NO ESPAÇO SIDERAL

Era o ano de 2001 e as torres gêmeas já haviam sido derrubadas. Além de me 'mostrar uma escritura' para quebrar meu coração que estava 'morno na fé', meu líder e discipulador me contava as novidades. "Meu irmão, ontem na reunião de líderes estávamos conversando sobre todos esses acontecimentos recentes...está claro que Jesus está voltando muito em breve, há indícios muito fortes", disparou enfático. "Não temos certeza absoluta, mas é uma estimativa diante dos fatos", ponderou, "pois só Deus sabe a data exata". O problema é que o Senhor nunca se interessou em contar pra ninguém.

Guerras, desastres naturais, epidemias e outras misérias seriam indícios do retorno de Cristo; nos evangelhos, o próprio Jesus teria dado as dicas sobre em que momento voltaria. Já no Apocalipse ('Revelação'), último livro do Novo Testamento, entram em cena a figura do Anticristo e as narrativas escatológicas que nos fazem ter certeza de que já existiam alucinógenos pesados naquele tempo. Todos estão livres para interpretar - e é por isso que você, leitor hipotético, sempre ouvirá, de tempos em tempos (até o 'fim dos tempos'!), um maluco com uma Bíblia na mão e uma mesma idéia estúpida na cabeça: "o fim está próximo!".

Num de seus programas humorísticos - ou melhor, lavagem cerebral em nome do Senhor - o 'Reino' explicava aos fiéis discípulos de Cristo que o reavivamento da verdadeira igreja primitiva que nosso movimento representava tinha surgido no momento mais adequado, porque haveria 'mais pessoas vivendo no mundo hoje do que em toda a história anterior da humanidade'. Então os cerca de 6 bilhões de habitantes da Terra hoje seriam mais do que todos os anteriores somados, entendeu? O problema dessa estatística é ser extremamente imprecisa, isto é, falação de merda: estimativas sérias elevam para cerca de 100 bilhões de seres humanos que já passaram por nosso planeta. Ainda que salvássemos 6, teríamos perdido uns 94 bilhões.

Outro problema com as previsões da volta de Jesus é a tremenda falta de originalidade: tudo indica que os próprios cristãos primitivos acreditavam num retorno do 'messias' em tempo beeeeeeeeem menor que 2 mil e poucos anos. O apóstolo Paulo chegou a recomendar ('falo eu, não o Senhor') que os discípulos não se casassem, para supostamente acelerarem a segunda descida de Cristo. Vai ver que foi isso! A carne é fraca - mesmo a carne 'salva' -, os cristãos queriam sexo e a única maneira de transar sem culpa era casando...bem que Paulo avisou: nasce mais gente, mais cabecinhas a convencer, assim Jesus se atrasa.

Talvez o momento ideal ainda não tenha mesmo chegado, embora um monte de guerras, desastres naturais, epidemias e demais tragédias de grande proporção já tenham ocorrido - e, na verdade, já ocorram há bastante tempo. Alguns crêem que as cenas picantes das novelas sejam um sinal do fim dos tempos, mas a lista é bem extensa: internet (www=666), tsunami, eleição do Obama, morte do Osama, eleição da Dilma, rebaixamento do Vasco, mulher melancia, show do Justin Bieber numa quarta-feira no Engenhão, etc.

Nostradamus deve ter sido um sujeito maneiro, um alquimista viajandão que gostava de escrever charadinhas para desocupados e otários tentarem adivinhar. Desde o campeão da próxima Copa do Mundo até os atentados terroristas mais sórdidos teriam sido previstos em alguma das centúrias do profeta francês do século XVI. Basta esperar o fato ocorrer para descobrir que estava previsto em versos tão claros quanto as águas da praia de Ramos. E nós, pobres mortais, amamos essa previsão do futuro (ou seria passado?) que nos ajuda a se importar menos com o presente. Toda hora um 'profeta' religioso fracassa com suas previsões de fim do mundo (a última foi há poucos dias), mas não se pode desistir: um dia tudo acaba mesmo e eles conseguirão acertar.

Mas quando? Cristo não voltou, porém 'a cada dia está mais perto', garantem os fanáticos. O pessoal do 'Reino' talvez trocasse e-mails com Deus Pai (ou Filho, ou Espírito Santo). Quem sabe Jesus esteja apenas num baita engarrafamento em algum ponto remoto da galáxia, ou mesmo tendo que disputar com outros messias para ver quem chega primeiro. Ele pode estar sendo, por exemplo, embarreirado pelo gigantesco planeta Hercólubus, cujo profeta colombiano Rabolú garantiu que estaria vindo de encontro à Terra e varreria nossa existência do universo. Se isto ocorresse teria um lado bom: nem eu nem você, leitor hipotético, teríamos que continuar escutando toda essa babaquice.

quinta-feira, outubro 13, 2011

"Memórias de um ex-fanático", capítulo 6


CAPÍTULO 6 - HERÓI DE ARAQUE (OU 'FALA ELE, NÃO O SENHOR')


Os capítulos mais recentes desta minha saga estão curiosamente bem amarrados, embora eu não estivesse preocupado com isso quando comecei a escrever essas risíveis (e 'choráveis'!) memórias. É um fatalidade, a meu ver: um capítulo está 'puxando' o outro. Como não planejei nem esquematizei nada, essas memórias são um exercício de anamnese - estou desencavando tudo o que posso para contar ao leitor hipotético.

Então eu falava antes sobre meu status de universitário no 'Reino', bem como da nossa patética defesa 'racional' da fé que apregoávamos. Bem, nós só fazíamos do nosso jeito (um jeito bem antipático) o que milhares também faziam e já haviam feito antes na história do cristianismo: tentar convencer o mundo de uma história delirante, mórbida, inconcebível, contida na segunda parte uma de coletânea de textos - e supostamente anunciada na primeira metade desta mesma coletânea.

Eis a eterna contradição da apologia, pela razão, do que só pode ser aceito por meio da fé. No cristianismo, essa longa tradição de 'apologéticos' parece ter sido iniciada por Paulo de Tarso, o 'apóstolo Paulo' - que não estava entre os 12 seguidores iniciais mas teria se convertido após ver o próprio Jesus (relato em 'Atos dos Apóstolos', Novo Testamento). De judeu fanático, perseguidor de cristãos, Paulo se tornaria um igualmente fanático cristão, liderando milhares e sendo um dos principais disseminadores da nova doutrina por grande parte do mundo então conhecido.

A história e o pensamento do apóstolo Paulo são relatados em Atos e em diversas cartas supostamente escritas por ele - há controvérsias quanto à autoria de algumas - para as comunidades cristãs de sua época (primeiro século depois de Cristo). Se o leitor hipotético quiser, pode ter fácil acesso a essas informações na internet e na própria Bíblia. Este breve relato é só pano de fundo para o que eu quero contar: como as idéias deste cara entraram - e saíram pra nunca mais voltar - da minha vida de ex-salvo.

O povo de Deus tinha um intelectual

Em matéria de palavrório bem articulado, Paulo foi o maioral da igreja primitiva, superando o simplório Pedro e o místico João ao dar um verniz filosófico à sua teologia cristã. Fariseu bem instruído, sabia advogar suas idéias de maneira eloqüente, o que impressiona de cara qualquer um que esteja ávido por fundamentar sua fé no cristianismo. Não à toa, Paulo era celebrado na minha igreja como uma mistura de santo e gênio. Nos estudos bíblicos que recebíamos ao conhecer o 'Reino' - e que reproduzíamos ao nos tornarmos discípulos -, a primeira passagem comentada era de Paulo:

"Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2a Carta a Timóteo 3: 16-17)

O primeiro contato com estas e outras passagens seria consolador e revigorante para mim, que queria 'viver a verdade'. Tinha sido educado por meus pais a dar crédito à Bíblia, a acreditar que existia um plano divino e que Jesus era o salvador da humanidade, mas nunca havia refletido com muito cuidado sobre nada disso até passar a ler diariamente as escrituras - em especial, o Novo Testamento. Os textos de Paulo pareciam a explicação ideal do que era ser um cristão e o que seria a salvação dada pelo cabeludo da Palestina. O povo de Deus tinha um intelectual em quem se mirar.

Os quatro Evangelhos, naturalmente, eram muito citados pelos discípulos do 'Reino'. Mas as cartas dos apóstolos - e em especial, as de Paulo - serviam como uma explicação, um suposto esclarecimento da 'Boa Notícia' e de como o crente deveria proceder no seu relacionamento com Deus, com os irmãos e com os 'perdidos'. Era muito comum que um irmão te mostrasse uma escritura para te convencer de alguma coisa - normalmente, alguma coisa chamada 'seu pecado'. E lá estava uma escritura do 'apóstolo dos gentios' em destaque.

Segui a sugestão de Paulo e virei um ávido leitor da Bíblia, querendo buscar a instrução, a justiça, enfim, 'a verdade'. Viria então a me deparar com um grande problema: se a doutrina cristã me ensinaria a verdade, essa verdade deveria fazer sentido, seria evidente, compreensível. Mas em vez de encontrar evidências e argumentos claros, ficava cada vez mais óbvio que confiava minha vida a um ajuntamento de falácias - das quais Paulo era só mais um hábil artesão. De minha maior referência em pensamento cristão, o apóstolo se tornaria um irritante professor de bobagens.

Da empolgação à desilusão

Não foi por causa de Paulo que abandonei a fé; ele não está com essa bola toda. Na verdade, o que me faz escrever este maçante relato é justamente isto: Paulo era só mais uma homem tentando provar o improvável. Dizem os controversos relatos históricos que ele tinha talento para a liderança e para o embate de idéias, determinado, corajoso. Há também quem postule que ele era uma espécie de mandão, carrerista e homossexual enrustido, irascível e intolerante. O que eu fui descobrindo, enquanto minha fé se esvaía, é que Paulo não tinha nada de útil a dizer a quem quer justificar sua fé.

Através dos escritos de Paulo eu supostamente entenderia que a humanidade se tornou inimiga de Deus por causa do pecado de Adão e Eva, sendo Jesus a solução divina para a reconciliação; saberia também que, embora criados à imagem e semelhança de Deus, os seres humanos eram maus e revoltados contra o Senhor; seria alertado que o homossexualismo é uma conseqüência da perversão da humanidade; e que a mulher deveria se submeter ao homem, pois Eva veio depois de Adão e foi ela quem caiu primeiro em transgressão e induziu o sujeito a pecar. Enquanto minha fé bastava, o discurso do apóstolo era um adorno elegante; quando o conflito com a minha racionalidade se intensificou, seus ensinos não foram mais que letra morta.

Como eu poderia aceitar aquelas explicações sem - como diria o próprio Paulo - 'queimar minha consciência'? Enquanto ele dizia que Deus se revelou claramente ao homem e que este preferiu revoltar-se (vide Romanos, por exemplo), não via sinal nenhum dessa evidência sem mentir pra mim mesmo; enquanto ele fazia explanações sobre Adão e Eva como seres reais, eu não podia mais fingir que a teoria da evolução não tinha fundamentos sólidos; enquanto ele pixava os homossexuais, eu me perguntava por que Deus então os fez assim para depois condená-los; enquanto o apóstolo vomitava misoginia, eu via mulheres capazes se submetendo a homens idiotas na igreja (e em todo o planeta).

Paulo me garantiu que toda a escritura é divinamente inspirada e um norte para quem quer 'agradar a Deus', mas ao lado de boas lições e bons conselhos eu também lia histórias implausíveis, estúpidas e vergonhosamente imorais - das quais não podia discordar nem duvidar, sob pena de 'heresia'. Era gritante que eu estava elevando uma coletânea de discursos humanos a um grau divino que não tinha o menor cabimento. Quanto a isto, o 'apóstolos dos gentios' diria uma das maiores verdades da minha vida cristã: "porque a palavra de Deus é loucura para os que se perdem..." (1 Corintios 1:18).

O apóstolo instruído segue neste mesmo capítulo - a exemplo de outros textos seus - criticando os judeus que pedem sinais e os gregos que pedem sabedoria: em resposta a isto, evidentemente, ele responde com o fanatismo arrogante de quem teria uma procuração divina para declarar os homens culpados de não crer por não haver nenhum sinal e nenhum sentido nesta história da salvação. No fim das contas, Paulo se exalta, se gaba, amaldiçoa, ameaça - faz enfim o que qualquer pregador incompetente precisa fazer para causar impacto na ausência de provas e de razão.

Depois de Paulo, vieram muitos outros - verdadeiros discípulos do apóstolo instruído. Você os encontrará com muita facilidade na televisão, nas livrarias, na internet; uns são elegantes e se passam por sérios pensadores, mas outros apenas encarnam o lado histérico do meu herói de araque. Toda a teologia misógina, pseudofilosófica, liberticida e que julga o gênero humano um traste asqueroso (criado por um Deus infalível) - desde Santo Agostinho e outros 'padres da igreja' até o pastor semianalfabeto da esquina - deve a Paulo o seu desenvolvimento e a lamentável adesão de tantas almas aflitas.

Às vezes, quando lembro da bela passagem de 1 Corintios 13 ('ainda que falasse a língua dos homens e a língua dos anjos...), em que o amor (ou a 'caridade') é exaltado acima da fé, estranho que tenha sido um pensamento de Paulo. Ele foi capaz de dizer coisas assim, mas tudo de ruim que defendeu parece ter sido sua herança maior. Em certa passagem, ao falar de casamento numa de suas cartas (talvez aos coríntios ou aos romanos), o apóstolo fez a seguinte ressalva: "falo eu, não o Senhor". Como ele teria feito bem à humanidade se tivesse posto esse adendo antes de cada idéia estapafúrdia que defendeu!

quarta-feira, outubro 12, 2011

O GIGANTE DE PEDRA SABÃO

Há 80 anos conseguimos posicionar no alto de um morro de mais de 700 metros um gigante de pedra sabão. Com 30 metros de altura, ele nos orgulha, nos envergonha, nos deprime, nos dá esperança. Ele é de todos os brasileiros, mesmo que você não o queira. Ele é de todos mas pertence à arquidiocese da cidade. Ele é um símbolo de idolatria, para alguns - e é um símbolo de supremacia, para outros. Ele só não pode não significar nada. Ele parece que quer abraçar, parece que quer voar, parece que quer cuidar e vigiar, mas não pode.

Ele é uma das sete maravilhas do mundo moderno, o que é uma mentira. Sua presença é fascinante e constrangedora, ao mesmo tempo. Ele é uma criatura que espelha uma outra criatura engendrada por outras criaturas. Uma criatura precisa pagar a outras criaturas para chegar perto dele, mas grande parte das criaturas que gostam desta gigante criatura não têm dinheiro para isso. Algumas criaturas assaltam algumas outras criaturas que querem estar com o gigante no alto do morro.

Eu já estive lá com o gigante. Sorri com o gigante ao fundo, imitei o gigante, guardei a imagem do gigante. O gigante é bonito e vê uma cidade gigante do melhor ângulo possível: vê o mar, vê a baía, vê o verde, vê o concreto, mas não vê o que entristece a cidade, nem vê os olhos tristes de quem o vê lá de baixo. Há quem peça ajuda ao gigante, colocando sobre seus ombros uma responsabilidade que ele não tem. Às vezes ele parece querer tombar, mas isso não lhe é permitido.


Há quem venha de outros países para ver o gigante e ver o que o gigante consegue ver. Nós nos gabamos de ter um gigante no alto do morro, nós nos gabamos dos nossos verdes morros. Pena que o gigante nada possa fazer quanto às coisas das quais nos envergonhamos. Mas ele continuará gigante, olhando lá de cima com seus olhos cegos, seu rosto plácido, sua envergadura impressionante, sua total inocência de criatura, sua solidão espelhando a solidão de um criador desconhecido.

segunda-feira, outubro 10, 2011

"Memórias de um ex-fanático", capítulo 6



CAPÍTULO 6 - HERÓI DE ARAQUE (OU 'FALA ELE, NÃO O SENHOR')


Os capítulos mais recentes desta minha saga estão curiosamente bem amarrados, embora eu não estivesse preocupado com isso quando comecei a escrever essas risíveis (e 'choráveis'!) memórias. É um fatalidade, a meu ver: um capítulo está 'puxando' o outro. Como não planejei nem esquematizei nada, essas memórias são um exercício de anamnese - estou desencavando tudo o que posso para contar ao leitor hipotético.

Então eu falava antes sobre meu status de universitário no 'Reino', bem como da nossa patética defesa 'racional' da fé que apregoávamos. Bem, nós só fazíamos do nosso jeito (um jeito bem antipático) o que milhares também faziam e já haviam feito antes na história do cristianismo: tentar convencer o mundo de uma história delirante, mórbida, inconcebível, contida na segunda parte uma de coletânea de textos - e supostamente anunciada na primeira metade desta mesma coletânea.

Eis a eterna contradição da apologia, pela razão, do que só pode ser aceito por meio da fé. No cristianismo, essa longa tradição de 'apologéticos' parece ter sido iniciada por Paulo de Tarso, o 'apóstolo Paulo' - que não estava entre os 12 seguidores iniciais mas teria se convertido após ver o próprio Jesus (relato em 'Atos dos Apóstolos', Novo Testamento). De judeu fanático, perseguidor de cristãos, Paulo se tornaria um igualmente fanático cristão, liderando milhares e sendo um dos principais disseminadores da nova doutrina por grande parte do mundo então conhecido.

A história e o pensamento do apóstolo Paulo são relatados em Atos e em diversas cartas supostamente escritas por ele - há controvérsias quanto à autoria de algumas - para as comunidades cristãs de sua época (primeiro século depois de Cristo). Se o leitor hipotético quiser, pode ter fácil acesso a essas informações na internet e na própria Bíblia. Este breve relato é só pano de fundo para o que eu quero contar: como as idéias deste cara entraram - e saíram pra nunca mais voltar - da minha vida de ex-salvo.

O povo de Deus tinha um intelectual

Em matéria de palavrório bem articulado, Paulo foi o maioral da igreja primitiva, superando o simplório Pedro e o místico João ao dar um verniz filosófico à sua teologia cristã. Fariseu bem instruído, sabia advogar suas idéias de maneira eloqüente, o que impressiona de cara qualquer um que esteja ávido por fundamentar sua fé no cristianismo. Não à toa, Paulo era celebrado na minha igreja como uma mistura de santo e gênio. Nos estudos bíblicos que recebíamos ao conhecer o 'Reino' - e que reproduzíamos ao nos tornarmos discípulos -, a primeira passagem comentada era de Paulo:

"Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2a Carta a Timóteo 3: 16-17)

O primeiro contato com estas e outras passagens seria consolador e revigorante para mim, que queria 'viver a verdade'. Tinha sido educado por meus pais a dar crédito à Bíblia, a acreditar que existia um plano divino e que Jesus era o salvador da humanidade, mas nunca havia refletido com muito cuidado sobre nada disso até passar a ler diariamente as escrituras - em especial, o Novo Testamento. Os textos de Paulo pareciam a explicação ideal do que era ser um cristão e o que seria a salvação dada pelo cabeludo da Palestina. O povo de Deus tinha um intelectual em quem se mirar.

Os quatro Evangelhos, naturalmente, eram muito citados pelos discípulos do 'Reino'. Mas as cartas dos apóstolos - e em especial, as de Paulo - serviam como uma explicação, um suposto esclarecimento da 'Boa Notícia' e de como o crente deveria proceder no seu relacionamento com Deus, com os irmãos e com os 'perdidos'. Era muito comum que um irmão te mostrasse uma escritura para te convencer de alguma coisa - normalmente, alguma coisa chamada 'seu pecado'. E lá estava uma escritura do 'apóstolo dos gentios' em destaque.

Segui a sugestão de Paulo e virei um ávido leitor da Bíblia, querendo buscar a instrução, a justiça, enfim, 'a verdade'. Viria então a me deparar com um grande problema: se a doutrina cristã me ensinaria a verdade, essa verdade deveria fazer sentido, seria evidente, compreensível. Mas em vez de encontrar evidências e argumentos claros, ficava cada vez mais óbvio que confiava minha vida a um ajuntamento de falácias - das quais Paulo era só mais um hábil artesão. De minha maior referência em pensamento cristão, o apóstolo se tornaria um irritante professor de bobagens.

Da empolgação à desilusão

Não foi por causa de Paulo que abandonei a fé; ele não está com essa bola toda. Na verdade, o que me faz escrever este maçante relato é justamente isto: Paulo era só mais uma homem tentando provar o improvável. Dizem os controversos relatos históricos que ele tinha talento para a liderança e para o embate de idéias, determinado, corajoso. Há também quem postule que ele era uma espécie de mandão, carrerista e homossexual enrustido, irascível e intolerante. O que eu fui descobrindo, enquanto minha fé se esvaía, é que Paulo não tinha nada de útil a dizer a quem quer justificar sua fé.

Através dos escritos de Paulo eu supostamente entenderia que a humanidade se tornou inimiga de Deus por causa do pecado de Adão e Eva, sendo Jesus a solução divina para a reconciliação; saberia também que, embora criados à imagem e semelhança de Deus, os seres humanos eram maus e revoltados contra o Senhor; seria alertado que o homossexualismo é uma conseqüência da perversão da humanidade; e que a mulher deveria se submeter ao homem, pois Eva veio depois de Adão e foi ela quem caiu primeiro em transgressão e induziu o sujeito a pecar. Enquanto minha fé bastava, o discurso do apóstolo era um adorno elegante; quando o conflito com a minha racionalidade se intensificou, seus ensinos não foram mais que letra morta.

Como eu poderia aceitar aquelas explicações sem - como diria o próprio Paulo - 'queimar minha consciência'? Enquanto ele dizia que Deus se revelou claramente ao homem e que este preferiu revoltar-se (vide Romanos, por exemplo), não via sinal nenhum dessa evidência sem mentir pra mim mesmo; enquanto ele fazia explanações sobre Adão e Eva como seres reais, eu não podia mais fingir que a teoria da evolução não tinha fundamentos sólidos; enquanto ele pixava os homossexuais, eu me perguntava por que Deus então os fez assim para depois condená-los; enquanto o apóstolo vomitava misoginia, eu via mulheres capazes se submetendo a homens idiotas na igreja (e em todo o planeta).

Paulo me garantiu que toda a escritura é divinamente inspirada e um norte para quem quer 'agradar a Deus', mas ao lado de boas lições e bons conselhos eu também lia histórias implausíveis, estúpidas e vergonhosamente imorais - das quais não podia discordar nem duvidar, sob pena de 'heresia'. Era gritante que eu estava elevando uma coletânea de discursos humanos a um grau divino que não tinha o menor cabimento. Quanto a isto, o 'apóstolos dos gentios' diria uma das maiores verdades da minha vida cristã: "porque a palavra de Deus é loucura para os que se perdem..." (1 Corintios 1:18).

O apóstolo instruído segue neste mesmo capítulo - a exemplo de outros textos seus - criticando os judeus que pedem sinais e os gregos que pedem sabedoria: em resposta a isto, evidentemente, ele responde com o fanatismo arrogante de quem teria uma procuração divina para declarar os homens culpados de não crer por não haver nenhum sinal e nenhum sentido nesta história da salvação. No fim das contas, Paulo se exalta, se gaba, amaldiçoa, ameaça - faz enfim o que qualquer pregador incompetente precisa fazer para causar impacto na ausência de provas e de razão.

Depois de Paulo, vieram muitos outros - verdadeiros discípulos do apóstolo instruído. Você os encontrará com muita facilidade na televisão, nas livrarias, na internet; uns são elegantes e se passam por sérios pensadores, mas outros apenas encarnam o lado histérico do meu herói de araque. Toda a teologia misógina, pseudofilosófica, liberticida e que julga o gênero humano um traste asqueroso (criado por um Deus infalível) - desde Santo Agostinho e outros 'padres da igreja' até o pastor semianalfabeto da esquina - deve a Paulo o seu desenvolvimento e a lamentável adesão de tantas almas aflitas.

Às vezes, quando lembro da bela passagem de 1 Corintios 13 ('ainda que falassa a língua dos homens e a língua dos anjos...), em que o amor (ou a 'caridade') é exaltada acima da fé, estranho que tenha sido um pensamento de Paulo. Ele foi capaz de dizer coisas assim, mas tudo de ruim que defendeu parece ter sido sua herança maior. Em certa passagem, ao falar de casamento numa de suas cartas (talvez aos coríntios ou aos romanos), o apóstolo fez a seguinte ressalva: "falo eu, não o Senhor". Como ele teria feito bem à humanidade se tivesse posto esse adendo antes de cada idéia estapafúrdia que defendeu!

terça-feira, outubro 04, 2011

"Memórias de um ex-fanático", capítulo 5

CAP.5 - A CIÊNCIA DA FÉ

Eu dizia no capítulo anterior que no 'Reino' havia muita gente instruída. Era uma espécie de 'tropa de elite' do Senhor, com gradução, mestrado ou mesmo doutorado. Esta tropa - da qual fiz parte como universitário - tinha um papel preponderante na árdua (muito árdua) tarefa de conciliar nossa fé com racionalidade, dando um verniz 'científico' à nossa teoria da salvação - ou melhor dizendo, dando uma aparência 'esclarecida' e 'verificável' ao que pregávamos.

Então tentávamos, na esteira da velha tradição apologética (de defesa, de justificação da fé), convencer os perdidos - e a nós mesmos - de que falávamos coisas razoáveis e que havia 'evidências' de que nossa fé tão peculiar merecia crédito. 'Evidências'... debates, estudos, palestras, conferências... buscávamos pateticamente fazer o que nem o nosso próprio Deus, no qual acreditávamos, se deu ao trabalho.

Mas como disse, este era o nosso verniz de racionalidade. No nosso dia-a-dia na 'guerra espiritual', valia a boa e velha crueza da fé contra tudo e contra todos. Se algum perdido mais habilidoso desmontava nossos argumentos - o que não era difícil para alguém com alguma disposição racional mais bem treinada -, sempre poderíamos apelar para a Autoridade e para a Revelação. Nos estudos bíblicos, bem como nos cultos, ainda que dessémos umas pinceladas de razão não podíamos abrir mão da 'verdade revelada'. Esfregávamos a nossa verdade na cara dos incrédulos, pois embora convencer fosse útil, atemorizar é que era fundamental.

Eis algumas pílulas de verdade que distribuíamos em cultos e estudos bíblicos:

LEI DA GRAVIDADE CRISTÃ (irmão com doutorado) - "Todos já devem ter ouvido falar da lei da gravidade, e a respeitam em seu dia-a-dia; ninguém que quer se manter vivo tenta sair voando do alto de um prédio, porque sabe que vai ser atraído para o solo, vai cair, é uma lei da física e todos respeitam. Mas a Bíblia diz claramente que 'o salário do pecado é a morte'. Por que então insistimos em pecar, em não obedecer a Palavra de Deus? A Bíblia contém uma lei muito clara e compreensível". Fico me perguntando por que não conseguimos converter todos os cientistas e acadêmicos que abordávamos após um argumento infalível como este. O pessoal das universidades era mesmo muito teimoso.

SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO (também do irmão com doutorado) - "Basta estudar os livros religiosos como o Alcorão, o Talmude, etc, e você verá que nenhum deles se coloca contra a Bíblia. Mas a Bíblia claramente os repudia. É como se estivéssemos numa roda de pessoas em que todos dissessem em relação a uma daquelas pessoas: 'não podemos apontar nada contra você', e esta pessoa dissesse: 'mas eu tenho algo contra todos vocês'. Assim é a Bíblia em relação a todas as doutrinas religiosas". Corrijam-me se eu estiver errado: se rolasse uma pancadaria entre determinados seres inanimados, a saber, livros religiosos, veríamos a Bíblia segurar o Corão, os Vedas e o Talmude pelo pescoço. Este grande argumento do irmão só tem dois defeitos: 1-é extremamente antipático; 2- ignora o que de fato apregoam as religiões 'rivais' do Cristianismo.

BREVE HISTÓRIA DA INTELECTUALIDADE OCIDENTAL (ou 'por que não podemos acreditar nessa gente', segundo um respeitado pastor)- "Todos estes homens eram ateus: Nietzsche era homossexual, contraiu sífilis e morreu; Marx era nervoso e cheio de preconceitos; Voltaire, pai do Iluminismo, passou sua última noite inteira pedindo perdão; a teoria da evolução de Darwin é furada; Freud era viciado em cocaína. São estas pessoas que vocês querem seguir, universitários?". Depois dessa o melhor é queimar as obras destes hereges, vocês não acham?

VERACIDADE BÍBLICA (pastor no púlpito da igreja) - "ninguém questiona a autenticidade de obras ainda mais antigas do que a Bíblia, como A Ilíada e A Odisséia, de Homero, mas logo se levanta uma voz para questionar se a Bíblia é realmente verdadeira". Hum...talvez isso ocorra porque ninguém é ameaçado de queimar eternamente por não acreditar em Ulisses ou Aquiles.

O apóstolo Paulo de Tarso - de quem falarei muito em breve noutros capítulos - dizia que a mensagem da Boa Notícia de Jesus parece loucura aos olhos do mundo. Taí uma das poucas coisas que este Paulo falou com a qual eu concordo. O Deus bíblico não quis esclarecer nada, talvez porque seria muito sem graça para ele. Mas vale dar umas boas risadas com a confusão mental que inculcou nas cabeças dos pobres mortais que tentam entender sua 'Palavra' - e que, para piorar, ainda tentam explicar para os outros.

domingo, outubro 02, 2011

Memórias de um ex-fanático, capítulo 4


CAPÍTULO 4- A 'ELITE INTELECTUAL' DO 'REINO'

Uma revolução que se preze - segundo diversos pensadores ao longo da história - precisa de uma 'elite intelectual' liderando-a, mostrando o caminho para o povo (liderado). Assim foi com a Revolução Americana, com a Revolução Francesa, com a Revolução Comunista...por que não seria com a 'revolução espiritual' que o 'Reino' traria? Nós éramos revolucionários, segundo nossos próprios critérios. E eu tive o privilégio de fazer parte da elite intelectual desta revolução inspirada por Deus: eu era...tchantchantchan! 'Universitário' - com aspas mesmo, porque se tratava da 'célula' mais influente daquela igreja, uma espécie de clã privilegiado.

Por que seríamos revolucionários? Acreditávamos na Bíblia ipsis litteris, tal como um monte de outras seitas evangélicas; desprezávamos manifestações de 'humanismo' questionador, o que também não era novidade nenhuma no protestantismo; temíamos o desejo sexual como 'o diabo foje da cruz', mais uma obviedade entre tantas facções; tínhamos uma hierarquia muito bem definida e autoritária, reprovávamos católicos, judeus, muçulmanos, budistas, etc, nenhuma novidade...então que raio de revolução aquela igreja oferecia para o mundo de pecadores?

Muito simples: havíamos chegado à conclusão de que não só católicos, budistas, judeus, ateus etc estavam afastados de Deus: todas as facções evangélicas também estavam, porque em nenhuma delas, segunda a nossa fria análise bíblica, os crentes viviam como verdadeiros discípulos de Jesus Cristo. Embora tudo aquilo que eles tinham em comum conosco, e que estava na cara de qualquer um que observasse com alguma atenção, concluímos que os outros não eram verdadeiros discípulos, mas apenas 'religiosos', falsos discípulos. Vocês hão de convir que estreitar ainda mais a já tão apertada porta de acesso ao paraíso - reduzindo para algumas dezenas de milhares de 'discípulos' do 'Reino' o número de salvos - era uma atitude revolucionária. Delirante, presunçosa, antipática, tragicômica...mas também revolucionária.

Claro que, além da inspiração divina, os líderes do Reino também precisavam sedimentar sua ideologia salvífica. Cabe observar que essa luz divina brilhou primeiro nos EUA e depois se espalhou pelo mundo pela vontade de Deus e de meia dúzia de sujeitos que provavelmente se achavam a versão melhorada de Tomás de Aquino ou Martinho Lutero. Aquele movimento revolucionário não poderia se desenvolver sem o que, por falta de uma expressão melhor, chamarei de 'produção intelectual'. E era nas universidades, e/ou a partir delas, que estes gênios da Teologia construíam sua revolução espiritual.

Para que ninguém duvide do quanto a estupidez travestida de iluminação é um fenômeno mundial, o Reino tinha núcleos nas melhores universidades do mundo, como MIT, Yale, Oxford, etc. Não seria diferente por aqui: USP, UFRJ, UERJ, UFMG, UFRGS, PUC, sem contar as menos importantes, como a Estácio de Sá, onde me formei em Jornalismo. Tínhamos a árdua missão de mostrar ao mundo que um verdadeiro discípulo do Reino de Deus poderia ser brilhante (missão, cá entre nós, quase impossível), bem como liderar nossos discípulos menos privilegiados intelectualmente.

Dentro da igreja, os universitários eram vistos com admiração e, ao mesmo tempo, antipatia e um certo ressentimento. Os principais líderes eram oriundos de universidades, o que para alguns parecia mero preconceito - o que é compreensível, devo admitir: não é preciso ser bacharel em nada para pregar idiotices. Mas ao nosso marketing religioso, era muito conveniente exibir pessoas com gradução, mestrado e doutorado: nos fazia mais atraentes às almas perdidas de nível superior e de maior poder aquisitivo - que afinal também precisávamos alcançar. Nada como um sectário fanático igual a tantos outros, mas com um belo diploma da USP ou da UFRJ na parede, como poucos nestas paragens.

Evangelizávamos alucinadamente nas universidades; promovíamos bate-papos bíblicos, estudávamos a Palavra com nossos colegas de faculdade, irritávamos, fazíamos rir e chorar a futuros engenheiros, professores, biólogos. Tudo isso sem descuidar das notas, dos trabalhos, e de rivalizar com os outros grupos religiosos estudantis - todos errados, segundo nossa iluminada percepção da realidade e da 'guerra espiritual'. Em nossos encontros nacionais, realizados anualmente (durante o demoníaco carnaval), exibíamos os nossos prodígios e falávamos de política, ciência, salvar o perdido, evitar armadilhas de Satanás, tudo com naturalidade e alegria - espontânea ou não.

Eu seria tremendamente injusto se não reconhecesse que aprendi muito durante aqueles anos. Tantas cobrançaseexpectativas me deixaram calejado e acostumado à pressão, o que não é inútil nesta vida. Conheci algumas pessoas legais e até fiz amizades. Percebo que poderíamos ter sido muito felizes se não quísessemos enfiar tantas 'verdades' goela abaixo de nós mesmos e dos outros. No fim das contas, a educação que recebemos, embora instrumentalizada em prol daquela patética 'revolução', acabou sendo fundamental para a rebeldia de muitos que iriam 'trair a causa', como eu. Tínhamos de equilibrar nossa cegueira religiosa e nossa instrução acima da média - o que resultou, para muitas, na inevitável e sadia (ainda que tardia) conclusão de que não éramos revolucionários, mas apenas tolos instruídos.