quinta-feira, abril 19, 2012

"Memórias...", capítulo 17

Cap.17 - PERSEGUIÇÃO AOS PERSEGUIDORES

Imagine, prezado leitor hipotético, que aquele cara mais forte e encrenqueiro da sua época de escola (ou da sua atual escola) fosse à diretora dessa mesma escola chorar lamúrias se dizendo perseguido pelos fracotes nos quais bateu e enfiou a cabeça na privada. Eu já testemunhei algo bem semelhante - quando, sofrendo bulliyng na 8ª série do ensino fundamental, reclamei contra meus dois perseguidores que me infernizavam constantemente e os vi fazendo um teatrinho descarado (no qual a 'genial' diretora acreditou). Você ficaria indignado e pasmado como eu fiquei?

Pois eu continuo indignado. E, principalmente, pasmado. Não com aqueles meus colegas boçais (que infelizmente não foram punidos como deveriam), mas com o discurso de 'perseguição' que sou obrigado a ouvir todo 'santo dia' dos meus compatriotas cristãos - que têm o mesmo status de 'vítima' desses valentões de escola. Num país eminentemente cristão - seja católico ou evangélico -, no qual uma série de decisões são tomadas ou evitadas por conta destas mesmas crenças cristãs, imagine só quem se diz mais perseguido e ameaçado: os cristãos! Talvez você mesmo, com o que acabo de dizer.

Todos do dias de semana tenho o desprazer de ser passageiro dos trens da Supervia carioca; vou e volto do trabalho todo amassado, sempre saindo dos vagões como quem acabou de sair no tapa ou correr uma maratona - amarrotado e cheirando pior do que quando entrei. Mas além desta experiência por si só fascinante, também sou quase todo dia, umas três ou quatro vezes por semana, ouvinte obrigatório de 'irmãos' e 'irmãs' que pregam, com um prego grosso e cheio de tétano, a 'palavra do Senhor'. Embora uma lei estadual proíba essa pregação em transportes públicos - por ser uma covardia, já que querendo ou não você tem que se expor a gritarias, aleluias e améns, sem poder optar -, os discípulos de Jesus, mais tementes à lei divina e cheios de fé na impunidade e na nossa apatia cívica, continuam sua obra.

Olho para meus companheiros de viagem e vejo que, em sua maioria, devem pensar como eu: 'que merda...mas como vou puxar uma discussão com esse bando?'. Os olhares de desprezo ou desaprovação superam claramente a adesão de algumas almas aflitas, mas não fazemos nada. Sei que sou um otário aceitando isso, mas racionalizo lembrando que ainda tenho 15 minutos de chão até meu local de trabalho, correndo contra o tempo, e na saída da estação, na muvuca da Central, há que se ter muita disposição para tentar argumentar com alguém - sobre qualquer coisa, ainda mais sobre religião ou a imposição de um discurso religioso a quem não quer se jogar do trem.

Os evangélicos mais engajados, como esses 'irmãos' do trem, sonham em tornar esse país uma teocracia de Jesus - ou melhor, dos pastores que mandam em suas congregações. É por isso que estão em Brasília, barrando projetos progressistas relacionados aos direitos da mulher e dos homossexuais, mas ao mesmo tempo berrando que a família está ameaçada ou outras asneiras. É por isso que se sentem no direito de dizer aos outros, os 'ímpios' que não compartilham de suas opiniões, o que devem fazer de suas vidas, de seus corpos, de seu dinheiro. É por isso que fazem, nos vagões dos trens surrados da Supervia, o que fariam do Brasil se pudessem. É por isso que se dizem perseguidos à primeira negativa ou argumentação que ouvem (quando ouvem) dos que pensam de outra maneira.

Mas a intolerância religiosa misturada ao discurso da 'perseguição' não é exclusividade desse povo: seus maiores rivais no mercado da fé, os católicos engajados, também querem que todos se ajoelhem perante Cristo - ou mais especificamente, perante o papa. Odeiam a emancipação feminina, a camisinha, a liberdade de expressão, os argumentos que desmontam sua 'lógica'...e do mesmo modo que os evangélicos, também se dizem perseguidos de modo a intensificar a perseguição que eles mesmos praticam. Assim, ai do pecador que ouse questionar os crucifixos em repartições públicas de um estado laico!

Esse expediente da perseguição religiosa (com aspas, a sofrida, e sem aspas, a praticada por eles) é muito antigo, está longe de ser uma invenção brasileira. Mas espanta como vem sendo utilizada com astúcia, especialmente por carismáticos e neopentecostais. A escola tem diretor, mas o valentão continua batendo, humilhando e depois teatralizando para comover os incautos. E quantos são os incautos...