'Memórias de um ex-fanático',capítulo 3
CAPÍTULO 3 - CRIADOR, CRIAÇÃO, CRIATURAS
"O Deus Eterno fez uma coisa que eu não gosto", me dizia um irmão sobre o leite de vaca. "Chego a sentir ânsia de vômito", completou. Dentro desta mesma ótica, para mim (quando 'discípulo' e 'salvo'), a criação da berinjela, do inhame e do jiló também não teriam sido muito inspiradas. O que seria arrasador para minha fé, entretanto, é que o meu rol de criações de Deus dignas de repulsa só aumentaria - e não poderia ser substituído por batata, tomate e milho.
Estas três palavrinhas do título merecem alguma análise, ou melhor, uma convenção aqui no texto. Por 'criador', vocês imaginam a 'quem' me refiro. Já 'criação' seria o ato de criar - então 'Deus criou o mundo' e depois deu uma relaxada; mas eu usarei também 'criações', no sentido de coisas que teriam sido 'criadas por Deus' mas que não são seres (animados). Então criaturas, por exemplo, somos eu, você, nossos primos religiosamente incômodos (os primatas), uma vaca, uma árvore, um vírus, um mosquito, etc. Já as criações seriam os planetas, como a Terra, as estrelas, etc, como veremos.
Quando fui batizado pelo sujeito da igreja que me 'evangelizou' e 'estudou' a Bíblia comigo, passei de mera criatura para 'filho de Deus' - isto, segundo o próprio sujeito, meu 'pai na fé'. Com 18 anos de idade, havia finalmente subido na vida, melhorado meu status - de futuro habitante do inferno, era agora futuro hóspede do paraíso! E enquanto filho de Deus, era sempre convidado a refletir sobre todas as coisas boas que Deus havia 'criado' - destacando-se, é claro, a Bíblia, a palavra de Deus, através da qual conheceria 'a verdade' e agradaria ao Senhor.
Deus criou o universo, fantástico! Por que ele criou? "Para sua própria glória", responderam. E os seres humanos? "Também para a sua própria glória, mas também para compartilhar com Ele a maravilha da vida". Deus criou a Terra com todo o cuidado, a natureza exuberante, os animais, todas as delícias que posso saborear, o sexo (após o casamento), minha família, meus amigos...tudo refletindo o amor e a sabedoria do Senhor.
Mas e o mal do mundo? "O mal é conseqüência das escolhas do homem; a natureza humana produz muitas coisas más, por isso precisamos do espírito de Deus para agradá-Lo", responderam. Mas se Deus criou tudo, nada pode existir fora dele; se o mal existe, é porque ou Deus criou o mal ou Deus, se não criou, é impotente para exterminar o mal ou prefere não exterminá-lo. Nenhuma das hipóteses se coaduna com a idéia de um Deus onisciente, onipotente e perfeitamente bom.
Fingindo me dar uma explicação satisfatória, meus líderes e 'discipuladores' diziam que o mal é a negação de Deus e que o homem resolve fazer o mal em vez de agradar a Deus fazendo o bem. Mas por que Deus permite o mal? "Por que todos têm livre-arbítrio; se Deus não permitisse ao homem escolher entre o bem e o mal, seríamos como robôs, imagine?". Então, segundo meus professores da fé, o Deus onisciente tudo criou já sabendo da confusão que ia dar: criou os anjos sabendo (e permitindo) que Satanás, um deles, viraria uma espécie de rival seu; criou os homens sabendo igualmente que eles 'se revoltariam' e praticariam o mal, sendo todos - todos - dignos do inferno.
Sim, porque segundo meus professores da fé, 'todos pecaram e estão afastados de Deus', está na Bíblia. Qual a probabilidade, leitor hipotético, de você ter 10 filhos e os dez, seguindo o livre-arbítrio que eles têm, decidissem estudar zootecnia em vez de qualquer outra coisa? Meio difícil de acontecer? Bem, no mundo das probabilidades divinas, a chance de se criar bilhões de seres humanos e todos, podendo escolher, escolhessem o mal - e se 'revoltassem' contra você - é a mais pura verdade. O ser humano só consegue ir para o céu se se arrepender de seus pecados e se tornar seguidor de Jesus Cristo; isto porque, naturalmente, por si mesmo, o ser humano é incapaz de escolher bem e agradar a Deus com sua vida - vida dada pelo próprio Deus, que já sabia que seria assim.
A 'Boa Notícia' cristã é essa: o Deus onipoente, onisciente, perfeito, maravilhoso, etc criou os seres humanos sem capacidade natural de serem bons. Todos tendem naturalmente a ir para o inferno - a não ser que acreditem numa coletânea de textos da Antiguidade que contam histórias (sem qualquer evidência) de um sujeito que apareceu na Palestina e supostamente morreu para salvar a humanidade. Este sujeito, que é Deus e ao mesmo tempo filho de Deus (!), teve a missão de 'consertar' o defeito de fábrica dos homens: serem maus e, portanto, merecedores de tortura extrema por toda a eternidade. Não poderia ser diferente, ensinam os homens de Deus.
Então a criatura humana é má, mas isto não foi um erro do criador, imagina! Da mesma forma, todos os desastres naturais, doenças, tragédias, tudo de ruim que acontece no mundo, está dentro do plano de Deus todo bondade, todo sabedoria, todo-poderoso. Todos devemos agradecer a Deus pelas coisas boas, mas de modo nenhum criticá-lo por tantas coisas horríveis - afinal, tudo faz parte de um 'plano divino', inclusive todos os seres mais inocentes que sofrem e morrem das maneiras mais hediondas. É assim que um Deus perfeito age, não é evidente?
Para mim, não era - não é, não pode ser. Um Deus perfeito - onisciente, onipotente, todo-bondade e 'o cacete a quatro' - não poderia criar um mundo assim. Um personagem literário pode ser assim - um 'homenzão' poderosíssimo e insano, ou perverso ao extremo, ou pateticamente incompetente. Mas um Deus com as características que meus professores da fé apregoavam, este não podia existir e criar essa confusão toda, este hospício da vida.
Não 'me revoltei' contra Deus nenhum; apenas concluí que o deus bíblico era impossível, a não ser que passasse a adorar um lamentável tirano lunático. Concluí, e concluo, que não há deus nenhum a culpar por todas as mazelas do mundo; nem há deus nenhum a louvar pelas coisas boas desta vida - coisas boas como por exemplo o leite de vaca que, ao contrário do meu 'ex-irmão', adoro.