quinta-feira, setembro 29, 2011

'Memórias de um ex-fanático',capítulo 3

CAPÍTULO 3 - CRIADOR, CRIAÇÃO, CRIATURAS


"O Deus Eterno fez uma coisa que eu não gosto", me dizia um irmão sobre o leite de vaca. "Chego a sentir ânsia de vômito", completou. Dentro desta mesma ótica, para mim (quando 'discípulo' e 'salvo'), a criação da berinjela, do inhame e do jiló também não teriam sido muito inspiradas. O que seria arrasador para minha fé, entretanto, é que o meu rol de criações de Deus dignas de repulsa só aumentaria - e não poderia ser substituído por batata, tomate e milho.

Estas três palavrinhas do título merecem alguma análise, ou melhor, uma convenção aqui no texto. Por 'criador', vocês imaginam a 'quem' me refiro. Já 'criação' seria o ato de criar - então 'Deus criou o mundo' e depois deu uma relaxada; mas eu usarei também 'criações', no sentido de coisas que teriam sido 'criadas por Deus' mas que não são seres (animados). Então criaturas, por exemplo, somos eu, você, nossos primos religiosamente incômodos (os primatas), uma vaca, uma árvore, um vírus, um mosquito, etc. Já as criações seriam os planetas, como a Terra, as estrelas, etc, como veremos.


Quando fui batizado pelo sujeito da igreja que me 'evangelizou' e 'estudou' a Bíblia comigo, passei de mera criatura para 'filho de Deus' - isto, segundo o próprio sujeito, meu 'pai na fé'. Com 18 anos de idade, havia finalmente subido na vida, melhorado meu status - de futuro habitante do inferno, era agora futuro hóspede do paraíso! E enquanto filho de Deus, era sempre convidado a refletir sobre todas as coisas boas que Deus havia 'criado' - destacando-se, é claro, a Bíblia, a palavra de Deus, através da qual conheceria 'a verdade' e agradaria ao Senhor.


Deus criou o universo, fantástico! Por que ele criou? "Para sua própria glória", responderam. E os seres humanos? "Também para a sua própria glória, mas também para compartilhar com Ele a maravilha da vida". Deus criou a Terra com todo o cuidado, a natureza exuberante, os animais, todas as delícias que posso saborear, o sexo (após o casamento), minha família, meus amigos...tudo refletindo o amor e a sabedoria do Senhor.


Mas e o mal do mundo? "O mal é conseqüência das escolhas do homem; a natureza humana produz muitas coisas más, por isso precisamos do espírito de Deus para agradá-Lo", responderam. Mas se Deus criou tudo, nada pode existir fora dele; se o mal existe, é porque ou Deus criou o mal ou Deus, se não criou, é impotente para exterminar o mal ou prefere não exterminá-lo. Nenhuma das hipóteses se coaduna com a idéia de um Deus onisciente, onipotente e perfeitamente bom.


Fingindo me dar uma explicação satisfatória, meus líderes e 'discipuladores' diziam que o mal é a negação de Deus e que o homem resolve fazer o mal em vez de agradar a Deus fazendo o bem. Mas por que Deus permite o mal? "Por que todos têm livre-arbítrio; se Deus não permitisse ao homem escolher entre o bem e o mal, seríamos como robôs, imagine?". Então, segundo meus professores da fé, o Deus onisciente tudo criou já sabendo da confusão que ia dar: criou os anjos sabendo (e permitindo) que Satanás, um deles, viraria uma espécie de rival seu; criou os homens sabendo igualmente que eles 'se revoltariam' e praticariam o mal, sendo todos - todos - dignos do inferno.


Sim, porque segundo meus professores da fé, 'todos pecaram e estão afastados de Deus', está na Bíblia. Qual a probabilidade, leitor hipotético, de você ter 10 filhos e os dez, seguindo o livre-arbítrio que eles têm, decidissem estudar zootecnia em vez de qualquer outra coisa? Meio difícil de acontecer? Bem, no mundo das probabilidades divinas, a chance de se criar bilhões de seres humanos e todos, podendo escolher, escolhessem o mal - e se 'revoltassem' contra você - é a mais pura verdade. O ser humano só consegue ir para o céu se se arrepender de seus pecados e se tornar seguidor de Jesus Cristo; isto porque, naturalmente, por si mesmo, o ser humano é incapaz de escolher bem e agradar a Deus com sua vida - vida dada pelo próprio Deus, que já sabia que seria assim.


A 'Boa Notícia' cristã é essa: o Deus onipoente, onisciente, perfeito, maravilhoso, etc criou os seres humanos sem capacidade natural de serem bons. Todos tendem naturalmente a ir para o inferno - a não ser que acreditem numa coletânea de textos da Antiguidade que contam histórias (sem qualquer evidência) de um sujeito que apareceu na Palestina e supostamente morreu para salvar a humanidade. Este sujeito, que é Deus e ao mesmo tempo filho de Deus (!), teve a missão de 'consertar' o defeito de fábrica dos homens: serem maus e, portanto, merecedores de tortura extrema por toda a eternidade. Não poderia ser diferente, ensinam os homens de Deus.


Então a criatura humana é má, mas isto não foi um erro do criador, imagina! Da mesma forma, todos os desastres naturais, doenças, tragédias, tudo de ruim que acontece no mundo, está dentro do plano de Deus todo bondade, todo sabedoria, todo-poderoso. Todos devemos agradecer a Deus pelas coisas boas, mas de modo nenhum criticá-lo por tantas coisas horríveis - afinal, tudo faz parte de um 'plano divino', inclusive todos os seres mais inocentes que sofrem e morrem das maneiras mais hediondas. É assim que um Deus perfeito age, não é evidente?


Para mim, não era - não é, não pode ser. Um Deus perfeito - onisciente, onipotente, todo-bondade e 'o cacete a quatro' - não poderia criar um mundo assim. Um personagem literário pode ser assim - um 'homenzão' poderosíssimo e insano, ou perverso ao extremo, ou pateticamente incompetente. Mas um Deus com as características que meus professores da fé apregoavam, este não podia existir e criar essa confusão toda, este hospício da vida.


Não 'me revoltei' contra Deus nenhum; apenas concluí que o deus bíblico era impossível, a não ser que passasse a adorar um lamentável tirano lunático. Concluí, e concluo, que não há deus nenhum a culpar por todas as mazelas do mundo; nem há deus nenhum a louvar pelas coisas boas desta vida - coisas boas como por exemplo o leite de vaca que, ao contrário do meu 'ex-irmão', adoro.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Memórias de um ex-fanático, capítulo 2

Queria deixar claro a você, leitor hipotético, que as minhas memórias de 'ex-salvo' (isto é, 'ex-discípulo') aqui relatadas não são fiéis à 'linha do tempo'. Assim, os fatos deste capítulo 2 que se segue não serão necessariamente anteriores ao futuro capítulo 3 - tampouco é tudo posterior ao capítulo 1. Venho e volto no tempo de acordo com o que me for conveniente. Por falar em conveniência, o relato a seguir é uma breve descrição de uma polissemia muito conveniente para quem precisa manter o controle sobre a vida dos outros.

CAPÍTULO 2- "CONSELHOS"

Durante meus quatro anos e meio como 'discípulo' ouvi muitos 'conselhos', para o bem do meu relacionamento com Deus e manutenção da minha salvação - ganha após o batismo nas águas límpidas da Baía de Guanabara. O problema é que quase sempre eram 'conselhos', com aspas, e não conselhos. Eis a bendita polissemia de que vos falava, pois.

Os conselhos que recebia no 'Reino' - apelido carinhoso de minha igreja - eram quase sempre ordens, às vezes ameaças, outras vezes mera opinião. Antes de ganhar a salvação, achava que a palavra 'conselho' tinha como significado primordial uma opinião/instrução embasada pela experiência de seu interlocutor - tipo: alguém que subiu em árvores a vida inteira pode aconselhar seu filho a como subir também, como evitar quedas, onde segurar, etc. Sendo um conselho, você pode seguir ou não. Mas no 'Reino' eu descobri que este não é o significado de conselho.

Todos os discípulos do Reino tinham à sua disposição, por livre e espontânea imposição, um sujeito ou sujeita chamado 'discipulador'. Seria um tipo de conselheiro...cujos conselhos você tinha de seguir caso não quisesse ser considerado um 'rebelde'. O cara que me convidou teve a genialidade de me dizer que se tratava de 'uma espécie de melhor amigo'. Bem, se seu melhor amigo monitora cada aspecto da sua vida e te convence a concordar com ele lembrando você das conseqüências literalmente infernais da 'desobediência', a definição foi perfeita.

"Deixa eu te mostrar uma escritura" - quando um discípulo ouvia esta frase do seu discipulador, sabia que vinha chumbo grosso. Você seria convencido do seu 'coração duro', encostado na parede pelo espírito de Deus se fosse necessário. Posso viajar nas minhas férias? Posso comprar determinada roupa? Posso ir a um determinado lugar? Posso pensar de uma determinada maneira? Espere o veredito, ou melhor, o conselho do seu 'melhor amigo' - em lugar da experiência, ele tinha algo melhor, o 'Espírito Santo'.

Mas eu também não tinha o Espírito Santo? Sim, irmão, mas a 'natureza humana' é enganosa, doente, má, e Satanás sempre está maquinando uma emboscada à sua fé, tentando te afastar de Deus, e por isso o Senhor te deu alguém para ajudar e orientar. Que bom! Praticamente todas as dúvidas de minha vida acabariam, desde que eu confiasse nas ordens, quer dizer, nos conselhos do meu discipulador. Até hoje me lembro de muitos, como estes:

'Da confissão'

Discipulador - "Irmão, sempre que você estiver tendo pensamentos impuros é importante confessar ao seu discipulador ou a um irmão mais forte na fé. Masturbação, dúvidas, coisas desse tipo. Essa história de 'privacidade' é perigosa...Satanás tenta invadir a nossa mente...nunca fique remoendo pensamentos para si...você pode ficar crítico, ou fraco na fé"
Eu - "Hmmmmfff...amém."

'Dos jogos de azar'

Eu - "É pecado eu jogar na loto, na sena, no jogo de cavalo? É um hábito muito arraigado na minha família..."
Discipulador - "Veja bem, meu irmão...por que eu desperdiçaria meu dinheiro, conseguido graças a Deus, em vícios como estes? A maior riqueza é a salvação, cara! E a gente já tem!"
Eu - "É mesmo..."

'Do baixo astral'

Eu - 'Não estou me sentindo legal pra sair, cara...sei lá, queria ficar um pouco sozinho"
Discipulador - 'Meu irmão, isso é egoísmo! Sozinhos somos muito mais vulneráveis a Satanás. Deixa eu te mostrar uma escritura..."
Eu - "Tudo bem, já vou me arrumar"

'Do caderno'

Eu- "Irmão, ganhei este caderno pra usar na faculdade...é imoral?"
Discipulador - "Hum...essas figuras são sugestivas...Os Skrotinhos...cuidado, irmão"
Eu - "Vou trocar...imaginei que isso não agradava a Deus"

Do ex-irmão

Discipulador - "Evite falar com Fulano...ele caiu da fé e está falando umas coisas..."
Eu - "Mas eu estou firme, irmão! E...quem sabe ele não volta?"
Discipulador - "Não, irmão...ele é perigoso...algumas coisas que ele diz podem contaminar nossa fé"

"Tomara que o conselho seja 'sim'...aí você pode ir visitar seus parentes!". "Se for o conselho do meu discipulador, peço Fulana de Tal em namoro". "Queria ter ido na festa com meus amigos 'do mundo', mas o conselho do meu líder foi 'não'...amém,eu encontro eles outro dia". Por que afinal a gente chamava essas ordens e opiniões de 'conselhos'? Que seu sim seja sim, que seu não seja não...que seu conselho seja um conselho, porra! Mas os líderes e discipuladores apenas seguiam um 'conselho' da cúpula da igreja - compreendi isso quando virei um sublíder e passei a 'discipular' e distribuir 'conselhos' também.

Graças a meus discipuladores (tive uns 6 ou 7 ao longo dos 4 anos e meio de igreja), aprendi sobre quem, quando e como devia namorar (no fim das contas, ninguém); quanto tempo por dia precisava orar e ler a Bíblia para me sentir 'perto de Deus' (1 hora pelo menos); quantas vezes devia estar com meus amigos 'perdidos' (quase nunca se eles não quisessem estudar a Bíblia comigo); quando questionar o pastor e demais autoridades da igreja e duvidar da infalibilidade das escrituras (nunca); até quantas pessoas eu tinha de evangelizar por semana, para não ficar 'fraco na fé' (o número podia variar).

Os 'conselhos' me foram uma espécie de droga. A princípio, o conforto de ter todo o desenho de minha vida já esboçado. Mas quando a minha rebeldia atrapalhava esse plano infalível, eu sentia a devida crise de abstinência, a qual um 'homem de Deus' estaria disposto a resolver me mostrando uma escritura e o fogo do inferno nas entrelinhas. Hoje, totalmente desaconselhado, já me acostumei com as dores nas juntas, náuseas, garganta seca, etc. Alguns já me disseram: 'um dia você vai voltar para o Senhor'. Tal qual um viciado em recuperação, eu penso: "Só mais 24 horas".

"Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Voltaire não duraria um dia no 'Reino'.

sábado, setembro 17, 2011

'Memórias de um ex-fanático' (1999-2003) - o início

Se eu fosse escrever um livro sobre meu período como crente/evangélico na congregação da qual fiz parte, talvez fosse um título adequado. Recentemente um jornalista, ex-evangélico, lançou um livro chamado 'Ímpio', contando sua história e o que o levou a não crer mais naquilo tudo - ou melhor,como chegou àconclusão de que era tudo uma perda de tempo. Portanto, não seria nenhuma novidade se eu escrevesse as minhas 'Memórias...'.

Mas como não tenho determinação o suficiente, nem creio que haveria grande (nem pequeno) interesse do mercado editorial, basta pra mim ir contando ao leitor hipotético algumas historinhas (reais) desse meu período. Começarei bem do princípio, tendo como meu fio condutor meu ídolo da adolescência - e ainda uma referência: Renato Russo. Você vai entender por quê.

Capítulo 1 - 'Ainda que falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos...continuaria sem entender porra nenhuma'

O cara que me apresentou ao mundo das certezas evangélicas foi 'esperto' - e, sem dúvida, bem treinado por outros tão 'espertos' quanto. Estou me referindo à arte do proselitismo, mais conhecido como 'evangelismo': trazer as almas perdidas para abraçar sua fé salvadora, 'espalhar a palavra'. Naquela igreja, antes de dizer aos jovens que eles vão para o inferno se não acreditarem piamente na sua coletânea de textos da Antiguidade (e, principalmente, nos que fazem sua interpretação e a berram do púlpito daquela igreja), você precisava mostrar que era um cara legal, um 'amigão'. E é nisso que entra Renato Russo, por incrível que possa parecer.

Durante minha adolescência, tímido, baixíssima auto-estima, via em Renato Russo uma espécie de guru. Tinha como norte aquele sujeito franzino como eu, feio como eu achava que era, barbudo como eu queria ser (para parecer mais velho e digno de respeito), inteligente e talentoso (como eu talvez pudesse ter sido mas não sou) - e ainda por cima sendo o grande líder num grupo cheio de caras boa-pinta, conseguindo provocar suspiros das meninas através do que dizia - justamente o contrário de minha vida.

'Monte Castelo' foi a música de meu guru que me levou a, de vez em quando, pegar aquele livro empoeirado que minha mãe deixava aberto na sala - livro conhecido como 'Bíblia Sagrada' - e tentar entender o que afinal aquele livro tinha para me dizer. Renato escreveu a famigerada canção como um mosaico de bonitas citações, entre elas "ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria", trecho da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. Resolvi então ler a bendita carta e outros textos bíblicos.

Aqueles textos me davam algum alento - quando não me enchiam de dúvidas. Mas talvez eu precisasse de alguém que me ensinasse a entender tudo aquilo - o sujeito esperto que me convidaria a 'estudar a Bíblia', é claro. Andando pelo Aterro do Flamengo, num dia ensolarado de final de outono, topei com uma figura que me pareceu um roqueiro meio 'fashion', meio estranho: "sabe que eu já convidei este cara para estudar a Bíblia?", disse o cara se referindo a Renato Russo, estampado na minha camisa preta.

Claro que fiquei curioso - e paguei o preço da minha curiosidade. Descobri, nos encontros e 'estudos' subseqüentes com o cara e o seu pessoal daquela igreja, que estava indo para o inferno e que precisava me arrepender dos meus pecados. Em resumo, meus novos amigos me revelaram que havia um muro entre mim e Deus, que o coração humano estava 'doente demais pra ser curado', que eu precisava confessar minhas 'perversidades' sexuais constrangedoras, que todos os outros credos eram equivocados (quanto mais não crer naquela coletânea de textos antigos), ser batizado, sair espalhando a 'boa notícia', etc (e quanta coisa há nesse etc!). Fiquei muito agradecido, acreditei e obedeci - obedecer não era algo difícil pra mim, e crer me era muito confortável. Mas e Renato Russo?

Num meio onde se exaltava tanto a 'verdade', onde se viva com tanto ardor esta 'verdade', sobravam historinhas mal explicadas e contraditórias sobre meu ídolo. Renato, segundo alguns, teria estudado mesmo a Bíblia, sendo 'desafiado' a anunciar em cadeia nacional que 'abandonava' o homossexualismo - e teria então desistido daquela igreja. Outros diziam que um cara da igreja - que também (nos) chamávamos 'discípulo' -, teria apenas visto Renato em alguma rua do Rio e tentado entrar no seu táxi para convidá-lo a estudar 'a palavra de Deus', convite recusado pelo meu guru, que teria considerado a proposta 'bastante inconveniente'.

Bem, saí da igreja cerca de quatro anos e meio depois, como vocês vão saber, sem descobrir 'a verdade': quem falou com Renato Russo? Ele chegou mesmo a 'estudar' a Bíblia? A única coisa sobre a qual os caras concordavam é que o roqueiro, no fim das contas, teria recusado tornar-se um 'discípulo'. Posso dizer que, mesmo não sendo hoje um ouvinte tão assíduo de Legião Urbana como era naquele tempo, continuo tendo Renato como uma referência - e como fã, sinto orgulho do 'meu guru' ter sido mais forte que eu e não ter entrado nesse hospício da fé.

sábado, setembro 10, 2011

Provocando Voltaire...

eu diria que 'se Deus existisse, não precisaria ser inventado'.

Entre Richard Dawkins e Voltaire

Parece estranho e soa um tanto pretensioso, mas muitas vezes é assim mesmo que me sinto. Tratam-se de dois grandes pensadores - o evolucionista inglês Richard Dawkins, nosso contemporâneo; o iluminista francês Voltaire, ícone do século XVIII. Não obstante o inevitável esbarrão no anacronismo da comparação, diríamos que em muitos aspectos - provavelmente na maioria - o pensamento dos dois é bastante convergente - como na exaltação do conhecimento como propulsor da humanidade e no desprezo pelos fanatismos. Mas é num ponto bem específico, e bastante delicado, que oponho aqui, neste arremedo de ensaio, a visão de mundo de Dawkins e Voltaire: o valor da crença em Deus.

O pensador francês teria sido, segundo algumas opiniões, um ateu posteriormente 'convertido'. Não tenho conhecimento suficiente para avaliar isso, mas suas obras - como 'Cândido', 'Deus e os Homens' e diversos verbetes do seu 'Dicionário Filosófico' - deixam fortíssimas evidências de sua crença num Deus acima de qualquer religião, bem como sua defesa da necessidade moral de se crer nesse Deus.

Com a mesma intensidade que execrava o fanatismo religioso e a intolerância dos que se julgam detentores da verdade absoluta, Voltaire via o ateísmo como um lamentável erro de raciocínio. O iluminista tinha a convicção de que uma sociedade descrente estaria fadada ao fracasso, uma vez que a crença num Criador justo - que pune os maus e recompensa os bons -, constituiria o alicerce de qualquer nação virtuosa e respeitadora das leis e dos direitos.

Voltaire vê o ateísmo como um equívoco muitas vezes decorrente do ensino de más doutrinas religiosas - que teriam como conseqüência a revolta dos homens contra a fé num Deus verdadeiro, por confundí-lo com os falsos deuses apregoados por fanáticos e 'velhacos' aproveitadores (e nisto não poupa críticas ao cristianismo e a muitas outras religiões). Embora condene a peseguição aos ateus e até os veja em melhor situação que os fanáticos, o pensador francês reitera sua reprovação à descrença.

Uma outra característica relevante do teísmo de Voltaire (pra mim é teísmo e não deísmo, mas isso é outra história) consiste no caráter (a meu ver) utilitarista de sua crença, isto é: em dados momentos, o pensador parece defender, acima da crença em Deus, a crença na necessidade prática dessa crença (!) para a sociedade. Não à toa, teria dito: 'se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo'.

Já Dawkins, de quem li muito menos que Voltaire (mas o suficiente no que tange à questão da religião), além de ateu, é ateu militante: está convicto de que, ao contrário de Voltaire, a crença em Deus não contribui em nada para o avanço de qualquer sociedade - ao contrário, traz obscurantismo, intolerância, enfim, atraso.

Dawkins entende que todos os sistemas religiosos vigentes são ou perniciosos, ou absolutamente inócuos. Assim como Voltaire, ataca pesadamente os fundamentalismos monoteístas e as 'verdades' dos livros religiosos como a Bíblia e o Alcorão. Mas vai muito além do pensador francês e a ele se contrapõe, defendendo o ateísmo como a posição mais lúcida que qualquer ser humano esclarecido pode assumir.

O teísmo virtuoso e tolerante defendido por Voltaire, para Dawkins, é desnecessário - ou melhor, uma perda de tempo: a moralidade do homem pode e deve se calcar apenas no seu humanismo esclarecido, tendo como auxílio os esclarecimentos trazidos pelas ciências.

Por que então me encontro 'no meio' dessas duas posições? Bem, eu fui religioso durante vários anos. Quando adolescente, mesmo se não ia à missa, rezava e pedia perdão a Deus por meus pecados - tipo se masturbar no banheiro, ou contar uma mentirinha para minha mãe. Aos 18 tornei-me evangélico, daqueles de 'evangelizar' em tudo quanto é canto e crer que todos os que não compratilhavam da minha fé iriam para o inferno. Aos 23, tornei-me o que sou hoje: um ateu agnóstico - não creio em Deus nem na possibilidade de se comprovar sua existência ou inexistência.

Voltaire tenta me convecer do impossível: que a razão pode comprovar a existência de Deus, uma peleja de séculos, da qual Tomás de Aquino, Descartes e vários outros participaram bravamente, mas não foram capazes de vencer. Todos estes supostos argumentos 'defnitivos', tipo o da 'causa final' ou 'primeiro motor', são bem construídos, mas comprovadamente falhos.
O mesmo se aplica ao argumento da necessidade de se crer em Deus (ainda que num Deus 'suprarreligioso') para se resguardar as sociedades. Temos, por um lado, diversos exemplos cotidianos de cidadãos ateus idôneos ou mesmo exemplares; por outro lado, a crença em Deus não tem resultado automaticamente em sociedades mais desenvolvidas, vide o banho de sangue e ignorância em nome de tantos credos.

Ainda que Voltaire retrucasse que as sociedades não crêem nesse Deus 'melhorado' que ele concebe, mas nas tantas e equivocadas doutrinas religiosas, isto não prova absolutamente nada: o homem sempre associou sua crença em Deus (ou em deuses) a deteminado conjunto de práticas - desde um 'selvagem' num rincão da África a um erudito teólogo europeu, todos me darão características muito específicas de sua fé. Uns gostariam de debater por anos; outros, de eliminar todos que discordam deles; mas o teísmo defendido por Voltaire é, definitivamente, uma crença muito minoritária e igualmente sem qualquer garantia.

Por que então, não abraço a visão de mundo do evolucionista Dawkins? Por dois motivos básicos: 1- não tenho a menor convicção de que um ateísmo militante seja o caminho do 'esclarecimento' da humanidade; parece-me tão utópico quanto o 'teísmo ideal' de Voltaire, porém com uma desvantagem: é veladamente 'histérico', beirando a intolerância, como num evangelismo às vaessas. 2- parece-me um neopositivismo, uma versão renovada de um cientificismo que já nos deu provas de ineficácia e até de certa crueldade. Dawkins propõe, no lugar de tantas doutrinas falhas, mais um caminho sem qualquer garantia de sucesso, como se devêssemos perder tempo tentando ensinar aos homens a descrença como salvação.

Embora admire e concorde em diversos pontos com Dawkins e Voltaire, não me sinto confortável e 'resolvido' com nenhum dos dois nesta discussão. Nenhum problema nisso: na verdade, para um descrente como eu, o desconforto honesto da ausência de respostas talvez seja o único caminho a seguir. Qual seria o seu, leitor hipotético?

ps.: uma outra visão de mundo muito, digamos, 'instrutiva', pode ser apreciada por quem se interessa pelas obras de Fritjof Capra (autor de 'Ponto de Mutação', 'A Teia da Vida', etc). Trata-se,a meu ver, de um 'misticismo científico' agradável e bem sintonizado com a questão da ecologia, cada vez mais importante pra nós. Infelizmente, ou felizmente, também não resolve muitas dúvidas.