CAP. 23 - O DEUS QUE AUTORIZA (NÃO SÓ) O INSULTO
"Liberdade, honestidade, respeito e justiça são todos princípios do cristianismo, o mesmo cristianismo que vem sendo perseguido pelos defensores do estado laico. Intolerantes, eles são contra o ensino religioso, as cruzes em repartições públicas, e agora voltaram sua ira contra a minúscula citação nas notas de real. É no mínimo uma ingratidão com a doutrina que inspirou nossa cultura, nossos valores e até mesmo nossa Constituição, promulgada 'sobre a proteção de Deus'. A Carta Magna será certamente o próximo alvo dos laicistas. Mas aí, não bastará uma ação cível: eles terão que emendar a Constituição. Neste caso sou obrigada a concordar com o presidente do Senado, José Sarney, para quem a ação do Ministério Público foi pura falta do que fazer". Estas foram as observações da jornalista Rachel Sheherazade, âncora no SBT, após noticiar recentemente que a Justiça Federal havia negado o pedido do Ministério Público de São Paulo para a retirada da expressão 'DEUS SEJA LOUVADO' das cédulas de real.
A bela jornalista paraibana, de sobrenome incomum, despontou como destaque do telejornalismo brasileiro ao criticar, num comentário (na época como âncora de um jornal local), o carnaval paraibano e brasileiro em geral - recorrendo aos mais mofados clichês saudosistas e pseudo-politizados (fique à vontade para conferir na web, prezado leitor). Depois de alegrar espectadores 'desatentos' e moralistas com suas sábias palavras carnavalescas, Rachel ascendeu na carreira e continua a todo vapor, agora como âncora nacional, comentando sobre comportamento, economia e, como vimos no parágrafo acima, religião & política.
Antes que alguém pense que tenho algo em especial contra a jornalista, já esclareço que este capítulo não é sobre ela; não sou seu fã, mas a respeito - bem mais do que por exemplo, respeito o Datena, o falso defensor dos oprimidos que não hesitou em dizer abertamente que os ateus não têm parâmetros morais e coisas do tipo - e ainda se fez de vítima quando tomou um processo. Na verdade, apenas achei o comentário da Sheherazade (xará da heroína das 'Mil e Uma Noites') muito propício à analise que proponho aqui na minha anamnese. Vamos por partes, diria o estripador.
1 - "Liberdade, honestidade, respeito e justiça são todos princípios do cristianismo, o mesmo cristianismo que vem sendo perseguido pelos defensores do estado laico". Muito rico este trecho, merecendo várias observações:
a) A jornalista de pronto destaca o cristianismo como a 'vítima de perseguição' dos defensores do estado laico, esperta (ou desatentamente) ignorando que o laicismo refere-se a qualquer religião. Você poderá dizer: 'mas o cristianismo é o credo predominante'. Sim, mas veja o teor inteiro do comentário de Rachel para constatar que não se trata exclusivamente de cristianismo - e no caso da ação do MP de São Paulo, trata-se da frase 'deus seja louvado', exortação feita por n denominações religiosas.
b) Pleitear que o estado seja laico de fato E de direito não tem nada a ver com perseguir o credo de ninguém, e a jornalista sabe bem disso - ou não sabe? O estado brasileiro, na verdade, já é laico de direito, mas evidentemente não o é de fato, considerando que diversas decisões políticas (aborto, casamento homossexual, jogos de azar, etc) são tomadas levando-se em conta, abertamente, as crenças religiosas dos agentes políticos. As cruzes nas repartições são uma bobagem perto de todo o jogo político conservador-reacionário brasileiro.
c) É verdade que a crença cristã inspirou e inspira boas pessoas deste país a lutar por 'liberdade, honestidade, respeito e justiça'. Isto porque essas pessoas têm bom-caráter e com certeza se focaram apenas nas boas mensagens de sua fé, ignorando e mesmo se contrapondo aos diversos ensinamentos de ódio, escravidão, preconceitos, mentiras e intolerância que abundam nos textos bíblicos do Antigo E do Novo Testamento. Ademais, os referidos princípios podem ser correlacionados a ensinamentos de qualquer religião, não só ao cristianismo.
2 - "Intolerantes, eles são contra o ensino religioso, as cruzes em repartições públicas, e agora voltaram sua ira contra a minúscula citação nas notas de real"
a) Para acender a 'indignação' de seus espectadores 'desatentos', a jornalista usa de palavras melodramáticas ('intolerantes', 'ira') para espinafrar o direito do MP e de qualquer cidadão em questionar o fato de que, num estado laico (que somos), existam tantas referências oficiais a deus/religião. Intolerância e ira, na verdade, é bufar de raiva quanto ao direito de qualquer cidadão eventualmente expressar discordância do establishment cristão-teísta dentro do estado laico em que vive (ou que deveria viver)
b) A jornalista enfia um 'ensino religioso' no meio do berreiro. Será que ela sabe como esse 'ensino' tem ocorrido na rede pública? Há vários relatos sérios de proselitismo cristão, especialmente evangélico, nessas 'aulas' que são ministradas com o dinheiro do contribuinte - seja ele cristão, judeu, ateu, muçulmano, budista ou o que seja. Ensinar sobre a história das religiões, fazer estudos comparados, vá lá...estamos longe disso, e é nosso direito (e mais, dever), como cidadãos conscientes, denunciar essa palhaçada proselitista. Se o colégio é religioso (e portanto, não é público) já são outros quinhentos, escolha da família, que mesmo assim pode contestar algo que considere abusivo.
3 - "É no mínimo uma ingratidão com a doutrina que inspirou nossa cultura, nossos valores e até mesmo nossa Constituição, promulgada 'sobre a proteção de Deus'."
a) Para a jornalista (e quem concorda com seus termos), além de ser um absurdo contestar o pseudo-laicismo, cometemos o pecado da ingratidão, oh. Se é 'no mínimo' ingratidão, o que seria 'no máximo'? Terrorismo, crime de lesa-pátria, vitupério contra o senhor-nosso-deus-e-seu-filho-jesus-cristo?
b) O cristianismo, junto com outras doutrinas e pensamentos, em especial os greco-romanos, mas também africanos e indígenas, inspirou nossa cultura. Isto não significa que suas contribuições foram apenas benignas - pergunte, você que crê, às milhões de almas de negros, índios, cristãos-novos (judeus) e mesmo cristãos dissidentes, dentre outros, que foram mortos, trucidados, escravizados, roubados...
c) o 'deus' da nossa Constituição não tem sido lá muito protetor, né? A não ser que a referida proteção se aplique aos donos do poder, como Sarney.
4 - "A Carta Magna será certamente o próximo alvo dos laicistas. Mas aí, não bastará uma ação cível: eles terão que emendar a Constituição. Neste caso sou obrigada a concordar com o presidente do Senado, José Sarney, para quem a ação do Ministério Público foi pura falta do que fazer"
Alguém já avisou a jornalista e seus signatários que nossa constituição tem mais emendas que cano furado? Alguém já contou para essa galera que emendar a constituição é um justamente um direito, uma possibilidade, desde que respeitadas as próprias regras constitucionais? Triste ela 'ter que concordar' com Sarney, mas o homem é realmente uma autoridade no assunto: sempre tem o que fazer para manter-se na velha e boa mamata de Brasília. Um mestre.
Rachel não cometeu nenhum 'pecado': ela tem o direito - e mais, é paga para expressar sua opinião. Duro mesmo é tentar debater civilizadamente com muitos cristãos. Quase sempre, é perda de tempo para os dois; só que o cristão pode te dizer, com um sorriso compadecido no rosto, que você vai para o inferno por não acreditar em textos tão verídicos quanto qualquer outra lenda deste mundo. Eles te acusarão de pecar contra deus (ou mesmo de nascer com pecado), chamarão você de 'amado', ofenderão com doçura qualquer pensamento discordante, ainda que você traga provas que comprometam o discurso desses filhos de deus. Desde que os primeiros cristãos levaram a sério suas historinhas e sairam pelo mundo, ficou decretado, pelos deus deles, o direito de insultar 'hereges' e converter 'infiéis'. Trata-se de um favor que eles fazem ao mundo...sou mesmo um ingrato.