quarta-feira, março 27, 2013

"Memórias...", capítulo 29

CAP. 29 - A VERDADE É UMA MERDA


"Ele vai cagar". Essa frase ressoa na minha mente como se a tivesse ouvido ontem - mas já fazem 24 anos. Lembro-me da minha então coleguinha de sala, Paula, fazendo essas palavras ecoarem naquela sala de apenas 10 alunos da segunda série do colégio Santo Alberto Magno, escola particular meio chumbrega na qual estudava em 1989. "Paula, que é isso???", ainda tentou argumentar uma outra colega, acho que Daniele ou Amanda, mas Paula permaneceu firme: "É verdade! Ele pegou papel, ele vai cagar!". Era verdade mesmo, e eu corri constrangido para o banheiro (que volta e meia não tinha papel) pensando "ah, filha da p...".

Mas a verdade não é uma merda só por causa da minha necessidade fisiológica, prezado leitor hipotético. Ela é tão ruim, mas tão ruim, que dezenas de vezes por dia preferimos a mentira - e não só por conveniência, mas por questão de mera sobrevivência. Eu devia ter feito com o papel higiênico o que faço todos os dias da minha vida com um punhado de verdades: guardar na porra do bolso, em vez de ter que tirar da mochila e expor ao escândalo (ou escárnio) alheio.

É claro que a Paula era uma peste, falastrona e com uma profunda vontade de aparecer. Como qualquer criança mal educada, revelou aquilo meio que por instinto, também. Mas ninguém pode dizer que ela mentiu. De acordo com a 'doutrina' da igreja na qual congreguei por quatro anos e meio, era exatamente isso que Paula deveria dizer caso perguntassem sobre meu paradeiro: "foi ao banheiro cagar, porque pegou papel de dentro da mochila". A obsessão em dizer a verdade - mesmo que inconveniente, estúpida e imprudente - era um dos traços marcantes do 'Reino' do qual fugi há dez anos.

Para virar um discípulo de Jesus,você tinha que se arrepender dos seus pecados, ou melhor, confessar e se arrepender. Mentiu para o chefe? Xingou a mãe? Bate punheta? Transou com a esposa de outro cara? Transou com outro cara? Transou com alguém? Transou com um cavalo? Sentiu vontade de transar com alguém ou com um cavalo? Conte tudo, irmão. Satanás atua no pecado que permanece escondido. Uma vez discípulo, você continuava tendo de contar para um outro irmão, periodicamente, sobre os seus pecados reais e imaginários, para não 'endurecer o coração'.

Mas assim devia ser sempre, no seu dia-a-dia com os perdidos: dizer a verdade, doa a quem doer, inclusive se doer em você. Nada daquelas mentirinhas sociais que os perdidos dizem uns aos outros porque não têm Jesus no coração. Devíamos ser sinceros, embora sempre 'com amor', como se isso fosse possível. É óbvio que não tardava, para cada discípulo, virar o chato da turma, ou o chato da casa, enfim, um chato. Quem quer alguém dizendo a verdade o tempo todo? E se for 'a verdade', então? "Sabe, amigo, você está afastado de Deus, tem que se arrepender dos seus pecados,se não irá para o inferno. Jesus te ama". Não sei como nunca apanhei enquanto era da igreja - se deus fosse justo, eu apanharia.

Essa questão da 'verdade acima de tudo' já rendeu bons debates também em âmbito filosófico. Dizem que o grande pensador Imannuel Kant era ferrenho defensor da verdade, tão obsessivo que acreditava, inclusive, ser correto delatar uma vítima para seu algoz caso ele pergunte por ela e você saiba onde a criatura está. Mesmo um iluminista pode ser um joguete de sua própria obsessão; felizmente, a opinião de Kant é mais que minoritária neste campo do debate de idéias. Já no mundo encantado de certas seitas religiosas, tem que ser assim, porque 'o diabo é o pai da mentira'. E tudo isso por acreditar na literariedade de uma coletânea de textos da Antiguidade que nunca foram (e como poderiam ser ?) comprovados como verídicos.

Nunca mais vi a Paula - e não sinto a menor saudade, posso confessar. Mas preferiria mil pessoas me dedurando quando eu fosse fazer o número 2 do que uma daquelas me dizendo que eu vou para o inferno se não me submeter ao doutrinamento de um grupo de gente que acredita que mitos de criação do Oriente Médio,ou de qualquer outro lugar, equivalem à 'verdade'. Excesso de credulidade e desprezo ao valor social da mentira: taí uma combinação que, sinceramente, é uma merda.