quinta-feira, dezembro 06, 2012

"Memórias...", capítulo 24

CAP.24 - MAIS UM POUCO SOBRE A AUTORIZAÇÃO DIVINA DO INSULTO

"Eu tenho pena do homem que na face da terra não acredita em deus", disse recentemente José Sarney, presidente do Senado e católico praticante. Membro 'imortal' da Academia Brasileira de Letras, Sarney bem que podia escrever uma peça farsesca sobre a polêmica em torno da expressão 'deus seja louvado' nas cédulas de real. Afinal de contas, foi o próprio Senhor-das-Terras-de-Maranhão-e-Amapá que, como presidente da república, em 1986, decretou a inclusão da frase nas notas do falecido cruzado. Agora ele diz que a tentativa de retirar a expressão é "pura falta do que fazer": com certeza sabe o que diz, pois enquanto a hiperinflação comia o dinheiro do povo brasileiro, a única coisa que Sarney podia fazer era mandar inserir uma exortação religiosa nas cédulas quase sem valor e rezar, rezar muito.

Talvez o leitor hipotético ainda esteja pensando no iniciozinho do parágrafo acima: "Sarney é católico praticante???"...ou antes: "ele acredita em deus???". Essas informações parecem incompatíveis com boa parte da biografia do octogenário presidente do Senado Brasileiro. Como já conversamos antes, em alguns capítulos destas memórias (vide por exemplo o cap.22), tudo é uma questão de interpretação, a bendita (ou maldita) interpretação. E não estamos aqui falando especificamente em listar 'bons cristãos' e 'maus cristãos', ou pesar na balança as coisas boas e as coisas ruins que o cristianismo, em suas variações, trouxe para o mundo. Poderíamos fazer isto - até devemos, quando alguém afirma enfaticamente que "justiça, liberdade, respeito e honestidade" são heranças cristãs - mas aqui prefiro me ater ao próprio personagem central da fé cristã, Jesus (faço aqui a concessão pré-natalina da letra maiúscula).

É comum, ou mesmo uma fatalidade, contrapormos o Antigo e o Novo testamentos bíblicos. Eles separam judeus e cristãos; podemos ter a impressão que separam, também, um deus iracundo (do Antigo) de um deus amoroso (do Novo). E o deus amoroso seria personificado pelo próprio Jesus. Mesmo ateus ou adeptos de religiões não-cristãs tendem a considerar, em geral, que Jesus era pelo menos 'um cara legal', alguém que pregou ensinamentos benignos como "ame ao próximo como você ama a si mesmo" ou "bem aventurados os que choram, pois serão consolados", entre outras afirmações afáveis e esperançosas. Mas Jesus puxou ao seu pai (seu-pai-ele-mesmo?), e quem realmente lê a bíblia (indo além de algumas frases) vai encontrar um carinha que pode ser bastante 'nervoso'.

Só para começar, lembre-se (ou saiba) que Jesus trouxe consigo a ideía do inferno, isto é, de um lugar de condenação e punição eterna a seres humanos. Não há nenhuma menção de tal lugar no Antigo Testamento - tanto é assim que os judeus não compartilham desse credo com os cristãos (dentre outros credos, obviamente). O cara ficava irado em diversos momentos, quebrando o barraco no templo, amaldiçoando figueiras (Marcos cap 11, Mateus cap 21) e, acima de tudo, indignando-se com quem não acreditava que ele era o 'filho de deus' (diversas passagens). Ao final do evangelho de Marcos (cap.16, versículos 15-16), ele foi curto e grosso com seus discípulos: "saiam pregando pelo mundo; quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado". E toda esta indignação sem termos qualquer prova confiável de que ele falava a verdade!

"Eu tenho pena do homem que na face da terra não acredita em deus". Pensando nas supostas consequências negativas anunciadas por Jesus, faz sentido a frase de Sarney - digam o que disserem acerca do quanto ele realmente segue os ensinamentos do seu salvador. Embora caiba ressalvar que a ideia de um pós-vida punitivo não é exclusiva nem originária do cristianismo, toda a história da cristandade (e consequentemente, do chamado 'Ocidente') é permeada pelo medo de sofrer eternamente após a morte. Essa cicatriz em nossa psiquê é uma herança de Jesus, Paulo, Agostinho e todo o time de profetas e pensadores do primeiro escalão da fé cristã. Mais do que pena, estes caras parecem ter uma profunda raiva de quem discordava deles, ou melhor, do deus deles.

Acreditem, Sarney pode estar falando a verdade sobre o que sente. Eu também sentia muita pena (e às vezes, raiva) de meus pais, amigos, conhecidos e até de desconhecidos que não acreditavam em deus - isto é, não acreditavam naquele deus no qual eu acreditava. Era realmente de partir o coração ver pela televisão, por exemplo, uma celebração hindu no rio Ganges, ou um festival zen-budista, e mesmo uma procissão católica no interior do Nordeste brasileiro, já que todas aquelas pessoas estavam enganadas e não praticavam 'a verdade', não adoravam 'o verdadeiro deus'. Quem sê vê como um mensageiro da 'verdade' tem, ao mesmo tempo, o rei na barriga e o peso da perdição do mundo nas costas.

Como hoje sou ateu, tenho a certeza de que um monte de gente sente pena de mim, igualzinho ao Sarney - e também sentem raiva, porque alguns deixam isso bem claro quando tentam argumentar comigo. Muitos destes que lamentam minha falta de fé também lamentariam se eu fosse judeu, muçulmano, budista, hindu, enfim, se eu fosse um não-cristão. E boa parte desses que lamentariam meu 'não-cristianismo' também não se dariam por satisfeito se eu embora cristão fosse, por exemplo, católico, espírita, ou simpático ao sincretismo ou ao ecumenismo. Esses cristãos fundamentalistas baseiam-se no que Jesus teria dito: "eu sou O caminho, A verdade e A vida; NINGUÉM vem ao Pai, senão por mim". Se o cara disse isto mesmo e se esta é a maneira certa de interpretá-lo, esqueça tudo sobre tolerância e chame de mentiroso quem iguala Jesus a Buda, Sócrates e outros personagens que demonstraram respeito pelas dúvidas e opiniões alheias.

O cristão fundamentalista não precisa vestir ternos horrosos ou batas ultrajantes - alguns, na verdade, parecem modelos da alta-costura. Basta que ele se sinta autorizado, ou pior, obrigado a te dizer que o inferno existe e que você irá para lá sofrer por toda a eternidade se não se converter ao 'caminho da verdade'. Ele te dirá com todo amor, verdadeiro ou ensaiado, que o deus deles é verdadeiro e justo por estabelecer estas condições. Dirão, inclusive, que a intolerância que professam é na verdade o amor de deus - pois 'o senhor' estabeleceu um só caminho até ele, para que o homem não ficasse confuso. E não adianta demonstrar a este mensageiro da verdade que as idéias dele não correspondem aos fatos - seria perda de tempo e, aproveitando as sábias palavras de Sarney, "pura falta do que fazer".