quinta-feira, dezembro 20, 2012

"Memórias...", capítulo 25

CAP.25 - RECONCILIAÇÃO

Este capítulo, embora remeta ao famoso dia 25 que mais uma vez se aproxima - e chegará, e passará -, trata fundamentalmente da dificílima tarefa de reconciliar homens e deus à luz (se há luz) do que chamamos Cristianismo. No século III d.c, a igreja católica concliou sua doutrina do Homem-Deus com a festa pagã do nascimento do Deus Sol. Inteligentíssima decisão, que facilitou a conversão de muitos romanos e a própria distensão com o império. Depois dessa conciliação, seguiriam-se muitas outras mudanças, porém quase todas relativas a rupturas, a separações - de instituições, de facções, de personagens históricos e anônimos...e sobretudo, a confirmação de que fé e razão viveriam em litígio no coração dos seguidores de Jesus. 

O deus cristão ergueu uma gigantesca e espessíssima muralha entre ele e os seres humanos. Deixou apenas uma mínima fresta - o filho de Maria. Ele, Deus, garante ser justo e afirma nos amar, mas pede que nos contorçamos para atravessar uma fresta pela qual não se vê o outro lado. Ele, Deus, teria enviado missionários para explicar a todos nós como conseguir se espremer o suficiente, mas nenhum dos enviados é convincente. Ele, Deus, não admite qualquer outra maneira de superarmos essa muralha, pois seus enviados, embora falhem nas suas explicações, nos asseguram que são mentirosos aqueles que sugeriram uma escada, ou uma porta - e o que se vê são pessoas desesperadamente entaladas.

Concílio, infelizmente, não significa conciliação, muito menos reconciliação. Porque houve muitos, sempre com o propósito de deliberar sobre questões de fé - e essencialmente escolher o que deve ou não constar da doutrina católica (antes apenas cristã). A própria divindade de Cristo foi deliberada em um concílio - o de Nicéia, em 325 d.c. Mais de trezentos anos para ter certeza de que Jesus vinha de Deus e era Deus simultaneamente, uma posição que hoje, ironicamente, é compartilhada por católicos e protestantes. Os cânones de cada concílio, muito mais do que consenso, contam a história dos vencedores e trazem à baila uma uniformidade que não existe nem nunca existiu. Que o digam Pelágio, os arianos, os gnósticos, e tantos outros anátemas derrotados.
Que o diga Orígenes de Alexandria. Apocatástase. Palingenesia. Não são palavrões, prezado leitor hipotético; são, na verdade, tentativas de construir portas e escadas para atravessar a impossível muralha a qual nos referimos mais acima. Teólogo e filósofo, Orígenes de Alexandria postulava que, no fim, haveria uma restauração universal, uma espécie de reconciliação na qual todos seriam salvos. A apocatástase viria após os fatos descritos no apocalipse, como uma bonança que sucede a tempestade; assim, após a ira divina, viria o amor realmente universal, a renovação, a regeneração, a tal palingenesia. O Segundo Concílio de Constantinopla (553 d.c) se encarregaria de soterrar esta ideia.

Digo 'soterrar' e não 'sepultar', porque ideias podem respirar em meio aos escombros. Orígenes de Alexandria não foi o único a ponderar que, afinal de contas, um deus que tudo pode e ama suas criaturas é capaz de deslindar o problema do pecado e perdoar de verdade. O caráter psicótico e cruel atribuído ao deus cristão pelos seus líderes eclesiásticos poderia, por que não?, ser modificado ou ao menos atenuado. Nos dias atuais, por exemplo, também existe que tenha coragem de insinuar isso, como o pastor americano Robert Bell, que postula a reconciliação universal e afirma que a verdade pode estar em qualquer sistema religioso. Obviamente, Bell tem seguidores mas, acima de tudo, críticos que vêem nele um herege.

Antes que algum leitor mais afeito à teologia cristã se levante para apontar eventuais imprecisões nesta narrativa, já digo que pouco importam os detalhes - na verdade, nem precisaria dizer isso se todos os eventuais leitores deste mundo fossem honestos consigo mesmos, hipótese ainda mais propensa a ataques do que a marginalizada reconciliação universal. Essa desonestidade intelectual é algo tão arraigado que, se o leitor hipotético se interessar, encontrará na internet zilhares de padres-pastores-teólogos que, num malabarismo mental desesperado, tentam justificar racionalmente (redundância) o porquê do caráter implacável do deus cristão e como poderia ser possível que o envio de criaturas para a danação eterna fosse algo compreensível e aprovável vindo de um ser supremo onipotente e, principalmente, justo.

Ano passado escrevi sobre o Natal (a Saturnália) de maneira um tanto amarga; não sei se faria diferente caso voltasse um ano no tempo, porém admito que o festejo, para o cristão, está ao menos indiretamente ligado a uma estranha tentativa divina de saciar sua 'sede de justiça' e de certo modo, reconciliar-se com suas criaturas. Mas não há dúvida de que o deus de Orígenes de Alexandria, Robert Bell e outros heréticos se revela muito mais passível de alguma admiração, porque é capaz de realmente perdoar, mesmo proporcionando, de todo modo, muito sofrimento a suas frágeis criaturas. Este deus poderia, quem sabe, ser o deus da reconciliação, um deus confuso mas de boa-fé, que até merecesse, em retorno, o nosso perdão por ter dificultado tanto a nossa jornada pela vida.