sexta-feira, março 18, 2016

PT faz as pazes com Nelson Rodrigues



Saindo da Central do Brasil nesta manhã, por volta das 07h30, recebo um panfleto vermelho. De um lado está escrito "DIA 13 FOI O DIA DO PATRÃO...DIA 18 É A VEZ DO POVÃO"; do outro lado, anuncia-se o "CANTO DA DEMOCRACIA!", "PELA DEMOCRACIA; CONTRA O GOLPE; EM RESPEITO AO MEU VOTO"  e as hashtags "#NÃOAOGOLPE" e "#MEXEUCOMLULAMEXEUCOMIGO". Em letras de menor destaque, a "Frente Brasil Popular" também avisa que vai rolar um "ato festival por mais direitos com grandes nomes da música brasileira". De imediato pensei num dos meus artistas favoritos, o petista ferrenho e semi-recluso Chico Buarque. Mas o que me motivou a escrever nesta hora do almoço, em que normalmente eu "penso na vida pra levar e me calo com a boca de feijão", foi o nada vermelho Nelson Rodrigues, saudoso cronista e dramaturgo. Saudoso e polêmico.

Em 1968, escrevendo sobre a Passeata dos Cem Mil contra a ditadura, Nelson, ferrenho crítico da esquerda (embora não só da esquerda), resolveu polemizar perguntando: "Onde estão os negros?". Numa passeata cheia de gente da classe média, liderada por intelectuais, estudantes e artistas, o cronista ironizou uma suposta ausência do povão e da cor tão recorrente daqueles fora dos estratos mais remediados e instruídos. Obviamente, Nelson sabia que seu recurso retórico era contaminado. Havia alguns negros, havia alguns pobres, talvez até poderiam vistos da janela rodrigueana; mas, acima de tudo, havia pessoas lutando legitimamente e expressando ideias que poderiam ser contrapostas por ideias, não por ataques pessoais como o rótulo de "elite desconectada da realidade e dos anseios populares".

Mais tarde, quando Lula se candidata pela primeira vez a presidente, em 1989, vê-se adversários, especialmente no campo conservador e/ou populista, acusando os apoiadores do PT dos mesmo rótulos deslegitimadores usados outrora por Nelson. Isto porque o PT reunia grande apoio de classes médias urbanas e mais escolarizadas, tendo ainda que cavar espaço com o povão - espaço que, à época, Collor, Maluf e Brizola, dentre outros, sabiam ocupar melhor. No segundo turno contra Collor, Lula recebe o apoio de outro "esquerdista da classe média", Covas, além do já popular Brizola, mas a aliança populista-conservadora em torno do "Caçador de Marajás" que queria proteger os "descamisados" dos "apaniguados" (fora o apoio dos Marinho) teve mais força que a classe média escolarizada que via o país cair no canto do bonitão collorido.

Um dia o dia chegou, e Lula é presidente. Reúne grande apoio (além de seu partido comprar o de deputados do baixo clero fisiológico). Tem êxito e, mesmo com a mancha do Mensalão, se reelege. Caminha para fazer sua sucessora. Tem novamente êxito, mas já sem o mesmo apoio avassalador de 2002, quando todos os candidatos de oposição o apoiaram contra Serra no segundo turno. Multiplicam-se os ex-petistas: uns indo mais à esquerda, outros mais ao centro, todos decepcionados com aquele partido que surgiu encantando amplos segmentos da classe média urbana. Mas o jogo do poder tinha que continuar a ser jogado e eis que Lula e o PT sedimentam a fórmula do sucesso: "nós contra eles", sendo "nós" o bem, os que apoiam Lula e PT, e "eles" o mal, a "elite que é contra o bem do povo". Não podem existir zonas cinzas nesse preto-no-branco, temos a síntese da síntese que explica 500 anos de Brasil.

Dilma é a escolhida como a sucessora desse legado. Com ela, "nós" continuaríamos vencendo "eles". Mas a máscara de competência da sucessora vai escorregando um pouquinho a cada dia, os fatos revelam que o novo Brasil do PT é só mais do mesmo, a esperança que venceu o medo dá lugar ao cinismo e ao fracasso, e "nós" somos um número a cada dia menor - e o pior é que "eles" não só deixaram de nos apoiar como agora vão às ruas contra "nós". Alguém então tem uma ideia: resgata a crônica rodrigueana de 1968 e pergunta agora "onde estão os pobres?". Pergunta e responde: "não estão nas ruas contra nós, quem se opõe é a elite que não quer ver pobre na faculdade ou no aeroporto". Nelson é resgatado com menos destreza literária mas com a mesma contaminação retórica.

De acordo com a polícia, que sempre tende a ser conservadora no cálculo, 3,5 milhões de pessoas foram às ruas no dia 13 de março de 2016. De acordo com os organizadores, que sempre exageram um pouco, foram 6 milhões. Como a verdade deve estar am algum lugar no meio, arredondemos para 4 milhões. Num país de 200 milhões, 2% da população inteira foi às ruas pedir que a presidente saia, além de manifestar profunda antipatia ou desgosto ou sei lá quê contra Lula e PT. Seriam 4 milhões de burgueses ou fascistas da classe média, de acordo com a narrativa lulista-rodrigueana.

Ora, mas se não bastassem os supramencionados furos no roteiro de quem rotula adversários em vez de debater ideias, temos o Datafolha informando que mais de um terço desses burgueses fascistas foi eleitor de Lula e/ou Dilma, bem como que pelo menos um terço desses burgueses fascistas são, no máximo, fascistas pobres, pois ganham no máximo 5 salários mínimos - ou seja, suportam a existência própria e da família neste país em recessão + inflação alta com cerca de 4 mil reais/mês, ou menos, muito menos. Isto aponta para mais de um milhão (quase um milhão e meio) de ex-eleitores petistas e aproximadamente a mesma proporção de gente simplesmente pobre ou mal remediada nas ruas contra Dilma, Lula e PT.

Nelson Rodrigues morreu em 1980, ano do nascimento do PT. Seu filho Nelsinho, que apanhou nos porões da ditadura pela qual o pai nutria simpatia, foi filiado ao PT. Mas o reencontro místico do PT com o mestre dramaturgo se dá pelo discurso, quem diria. Trata-se da "vida como ela é", sem precisar sequer indagar a respeito do que Lula considera 'democracia', 'golpe', 'respeito ao voto' e se ele ouve Chico Buarque ou Michel Teló.