quinta-feira, maio 16, 2013

"Memórias...", capítulo 30

CAP.30 - DO DIREITO AO DEBOCHE (OU 'DO DEBOCHE DOS DIREITOS')

"Guarde o seu deboche para você", me disse recentemente um ex-amigo. Ele se referia a certas observações minhas sobre sua visão de mundo - coisas como ele acreditar que o planeta tem 6 mil e poucos anos e que a raça humana começou com Adão e Eva, dentre outras afirmações que seriam verdade porque registradas numa coletânea de textos consagrados. Considerou deboche eu ter revelado meu desapontamento pelo fato de ele, seletivamente, misturar História com Mitologia.

Não que a História seja o extremo oposto do que disse Napoleão ("um conjunto de mentiras sobre os quais se chegou a um acordo"). Mas me diga, leitor hipotético, se você não acharia ridículo um sujeito escandalizar-se e afirmar que alguém será punido pela eternidade por não acreditar que Dom Pedro berrou "independência ou morte!". No afã de provar algo, um historiador pode recorrer a fontes fidedignas, verificáveis por todos, ou meter o rabinho entre as pernas. Já o "homem de fé", este tipo sociológico que vemos no Largo da Carioca, na entrada da Central e pelo mundo todo, grita e carrega faixas dizendo "Atenção ateus, espíritas, católicos, budistas (...) vocês vão para o INFERNO". Isto é o que ele chama de fé, inverificável - e para ele, acima de qualquer crítica.

Sempre tive receito de ferir os sentimentos religiosos de alguém; ainda tenho, apesar de ser capaz de emitir minhas opiniões, como neste blog. Mas à época de membro do "Reino", apelido da seita na qual congreguei por 4 anos e meio, tive de aprender a ferir em nome da fé, da "verdadeira fé" que eu defendia. Mesmo com sorriso amarelo e gaguejando, tinha de dizer a qualquer um que não congregasse naquele movimento fascistóide-religioso: "você vai para o Inferno, a não ser que se arrependa e pratique a Bíblia conforme ensinamos". Eu havia aprendido a sentir orgulho disto, ao invés de asco. E se assim o fazia, era por convicção e amor aos perdidos; se alguém me dava o troco, recusando-se a crer no que eu cria, eu lembrava que "Jesus e seus apóstolos também foram perseguidos".

O "homem de fé" não aceita contra-argumentos, não aceita o que ele chama de "deboche"; contra isso ele se inflama, diz "tá amarrado" e outros jargões - e é claro, ora por você, ou pelo menos diz que assim o fará. Ele, muitas vezes, gostaria de te matar por discordar e resistir, mas normalmente, quando isto ocorre, o "homem de fé" engole a raiva e te chama de "amado". Se ele te chama de "amado", normalmente seguem-se todas aquelas supostas ameaças de fogo e enxofre. Ele tem a sabedoria de deus, que segundo um tal de Paulo - e com razão - é loucura para a sabedoria humana.

Como eu só posso recorrer à sabedoria humana, pois não conheço nenhuma outra, sinto-me no direito de discordar. Peço alguma prova a quem me diz ter existido um casal primordial num tal Jardim do Éden; peço que me dê qualquer argumento razoável no sentido de exaltar sua crença acima das milhares de outras; refuto colocações descabidas, refuto a repulsa aos fatos, à ciência, à interpretação literal de textos obscuros. O "homem de fé" se sente acuado, o jogo se inverte: eu agora sou um debochado, alguém que não respeita a doutrina religiosa alheia.

E por que respeitaria? Não basta que eu respeite o direito de qualquer homem ou mulher deste mundo de crer no que bem quiser, bem como de expressar isto? Não basta que eu, diferentemente deles, fique na minha em vez de fazer proselitismo? Não basta que eu fique calado quando eles berram que um certo cara me ama e que o tal cara é o caminho, a verdade, o caralho a quatro? Não basta que ele se gabe da quantidade dos que pensam como ele, vendo nisto uma vantagem? 

Talvez por ter aberto mão de seu direito de pensar, o ofendido homem de fé não sabe que as idéias não têm direitos, muito menos privilégios. Não sabe que se alguém as julga estúpidas ou insanas, este alguém não deve responder por crime nenhum - pelo menos não neste mundo, cheio de crenças e descrenças.