terça-feira, fevereiro 14, 2012

"Memórias...", capítulo 14

CAP.14 - CARNAVAL DO DISCÍPULO




Aproveitando que se aproxima (e na prática já começou) o Carnaval e seu abençoado feriadão, venho relatar ao leitor hipotético um pouco dos meus quatro anos de carnaval santo, isto é, dentro do 'Reino'. Vai ter muito samba no pé, diversão, folia, curtição, namoro, liberdade, relaxamento...quer dizer, mais ou menos - mais para menos.



Nunca fui folião de fato, no que meu leitor hipotético poderia concluir, apressadamente, que carnavais passados em retiros universitários seriam perfeitos para mim. O problema é que, embora não seja nem fosse um folião por excelência, semprei gostei daqueles dias sem escola, sem apurrinhação (fora a familiar, inevitável) , podendo acordar a hora que quisesse e curtir a cidade menos tumultuada - curiosa ironia, mas é verdade: o Rio se livra de muita gente que vai para a Região dos Lagos, e os blocos têm sua hora e lugar, basta estar atento.




Mas como você já sabe, essa liberdade era impensável, verdadeiramente pecaminosa no 'Reino' dos discípulos de Jesus. Os universitários, segmento do qual fazia parte, se reuniam nas chamadas 'conferências' - porque retiro pega mal. Além de fugir das tentações deste mundo perdido, conhecíamos ou revíamos nossos irmãos estudiosos de outros estados. Nos meus quatro anos de 'folia' cristã, três passei em Sampa (uma vez no capital, duas no interior) e uma aqui mesmo no Rio, quando fomos os anfitriões. Uhu!




Apesar da inevitável ideologia obsessiva da 'guerra espiritual' cristã, os encontros universitários tinham seu lado divertido. Entre uma pregação e outra, uma oração e outra, nossos líderes se esforçavam para nos entreter em gincanas, shows, festinhas, parques...em alguns momentos dava para esquecer de que 'Deus tinha um propósito ao reunir seus filhos universitários'. Em alguns momentos.




E o samba, sinônimo de carnaval para cariocas e muitos outros brasileiros? Normalmente, passava bem longe. Via que vários irmãos e irmãs gostavam de samba na igreja (existia até uma bandinha de jovens), mas se misturar com os perdidos, nem pensar. Os desfiles também eram mal vistos, por causa da 'imoralidade'. E o 'propósito' (isto é, convencer outros a pensar como nós) sempre tinha de prevalecer sobre a diversão. Assim, embora não fosse de brincar em blocos, tive de abrir mão de assistir aos desfiles de escolas de samba, coisa da qual sempre gostei.




Não é novidade essa guerra cristã - e mais especificamente, evangélica - contra o pecaminoso carnaval. A própria festa, dentro da tradição católica, tem essa 'entrega aos pecados da carne' (por isso o próprio nome 'carnaval') que precede uma consternada penitência. Para o evangélico, como fui, é o próprio príncipe do mundo (leia-se: Satanás) que sai pelas ruas incitando o pecado. É por isso que os 'santos' ('separados') fazem seus retiros. O 'santo' não vê arte, celebração da vida, alegria, criatividade: só vê o pecado das almas perdidas e agradece ao seu deus por ter a chance de se esconder num sítio ou dentro de algum templo.




Hoje, como perdido, posso perder meu tempo curtindo meu feriadão, escutando um bom samba-enredo ou uma marchinha, lendo, vendo um filme, dormindo, tocando violão, dando uma olhadela no povo nas ruas, encontrando amigos, enfim, sendo eu mesmo e não o misto de criança com demônio que o 'Reino' me disse - na prática - que eu era. Lascívia, indecência, irresponsabilidade? Existem e sempre existirão, independentemente da data festiva, ou se não há qualquer festa. Cada um é capaz de brincar seu carnaval sem fazer mal a ninguém nem a si mesmo, basta pensar um pouquinho - não é necessário fugir para nenhuma 'conferência', retiro, encontro ou o diabo que for.