quarta-feira, novembro 02, 2011

"Memórias...", capítulo 8

CAPÍTULO 8 - CONTENDO A FUGA DAS OVELHINHAS

Aproveito o dia de hoje para continuar rememorando minha falecida fé cristã. Abandoná-la foi uma libertação, mas, ao mesmo tempo, também vivenciei uma espécie de luto.

Não é nada fácil abandonar 'verdades absolutas'; isto vale para qualquer âmbito da vida: religião, política, família, etc. As conseqüências são deliciosas e dolorosas, muitas vezes bem mais dolorosas que deliciosas (acredito que nunca são apenas uma coisa ou outra). No caso da fé cristã, passei a infância, a adolescência e o início da vida adulta com ela - e como tantos, nesta trabalhosa tarefa de reorganizar suas crenças (seu norte na vida), praticamente só ouvi críticas ao concluir que não me valia a pena.

No 'Reino' do qual fazia parte, a privacidade era vista com péssimos olhos. Estar sozinho, ainda que (ou principalmente) sozinho com seus pensamentos, seria o primeiro passo para 'cair da fé'. Satanás estaria sempre tentando nosso 'natureza humana' suscetível ao mal. Os mais fortes na fé se responsabilizavam por vigiar os mais fracos e inexperientes, embora vigorasse um discurso de vigilância mútua. Implorávamos a Deus para nunca se deixar levar por dúvidas, embora tívessemos diversas razões para duvidar.

Quando o 'discípulo' ia mal, num caminho para se afastar daquela igreja, logo se formava uma força-tarefa para cercá-lo e persuadí-lo de todas as maneiras. Três argumentos (entre outros) eram muito utilizados nesta labuta espiritual - eu usei com alguns, alguns usaram comigo. São eles:

1 - O bom e velho ilusionismo de Satanás: "irmão, você está deixando Satanás te influenciar pensando dessa maneira. O pecado está dominando seu coração". Mesclávamos doses cavalares de culpa com uma certa ingenuidade do tipo 'você está sendo induzido a erro' - então quem pensasse de maneira diferente do discurso oficial da igreja era ao mesmo tempo rebelde e um boneco nas mãos do Diabo. Funcionou com muitos.

2 - O argumento da ingratidão: "depois de tudo que você aprendeu, dos amigos que fez e das coisas boas em sua vida você vai virar as costas pra Deus?". O primeiro problema deste argumento é que muitas vezes estas 'coisas boas' eram superdimensionadas, vindo acompanhadas por muitas decepções e novos problemas (muitos perdiam amizades valiosas porque negligenciavam amigos 'perdidos' em nome da fé). O segundo problema é a malícia falaciosa desta argumentação: não é porque obtive alguma vantagem por abraçar um idéia que não posso questioná-la quanto à sua veracidade. Até o nazismo pode beneficiar um adepto de alguma maneira.

3 - A 'aposta de Pascal' (argumento atribuído ao famoso matemático, que era religioso). Resumindo: "se você crê (em Cristo) e está enganado, não terá nada a perder quando morrer; mas se você não crê e está enganado, terá tudo a perder quando morrer". Fico meio abismado com o primarismo deste argumento (e como foi defendido por um gênio como Pascal). Só há defeitos neste raciocínio: a - ignora todas as demais crenças religiosas; b - pressupõe que entregar a vida a uma crença sem qualquer evidência não tem qualquer conseqüência negativa (eu e qualquer um que foi/é cristão sabe que está longe de ser assim); c - é de um oportunismo fuleiro (fazer uma média com o cara, vai que ele existe?).

Nenhum destes argumentos (nem outros menos cretinos) me segurou no 'Reino' ou na fé cristã de modo geral, e eu não fui o único. Acho muito mais honesta outra frase do Pascal: "creio porque absurdo". Eu também acho absurdo, só que é justamente por isso que não creio.