"Memórias...", capítulo 13
CAP.13 - O ÚLTIMO (ATÉ QUE EU ESCREVA OUTRO)
Novembro de 2003. Seria a última vez em que sairia da Casa do Marinheiro, em pleno domingo à tarde, e cruzaria aquela rua comprida que começa à beira da Avenida Brasil até chegar no ponto final do 485 - para retornar da Penha, onde a igreja se reunia, até Botafogo, bairro onde eu morava com minha família de perdidos. Não foi uma volta fácil: além do calor daquele dia (com o perdão da palavra) infernal, uma 'irmã' tagarela me acompanhava - felizmente, só até eu pegar o ônibus.
A igreja não estava nos seus melhores dias. Já havíamos descoberto (ou 'Deus teria mostrado') que não éramos os portadores da verdade absoluta, embora ainda discípulos de Jesus Cristo; o 'irmão' que escreveu um longo tratado expondo os podres do 'Reino', um inglês, falava até de 'acabar com a Pax Americana', tendo em vista que o líder maior do nosso movimento era um americano (quem já foi dono de parte da África, da América e da Ásia sabe o que é imperialismo, né?). Mesmo assim, ao contar para alguns 'irmãos' que eu não pretendia voltar no próximo culto, ouvi sermões cheios de preocupação pela minha alma.
Havia alguns meses - mais precisamente, desde maio de 2003 - que minha rotina como membro do 'Reino' era um pouco menos neurótica: fui desobrigado de ter um discipulador (vide meus capítulos iniciais), não me cobravam números de evangelismo nem por quantas horas eu havia orado e lido a Bíblia. Isto, no entanto, não tornava mais leve o clima da igreja: mágoas vieram à tona, fofocas chegavam aos ouvidos de todos e a própria falta do controle rígido, ao mesmo tempo que comemorada, deixava todos meio atônitos: "como vamos agir agora?".
Até vigília fizemos, com direito a picadas de abelha e muita dor nas costas. Eu e alguns outros universitários (vide caps. 4 e 5) passamos todo o período de faculdade como 'discípulos'. De modo geral, fomos fiéis a deus o suficiente para estragarmos amizades, ouvir piadinhas e, é claro, não pegar ninguém (quando uma colega me deu mole no curso de Jornalismo, sem dúvida era o diabo me tentando - Thiago, seu gênio...). Era difícil socializar direito com os outros quando você via a todos como futuros habitantes do inferno, sendo que você próprio poderia perder seu ticket se o 'coração endurecesse pelo pecado'.
Graças à minha fidelidade de ovelinha, pequei muito pouco contra deus e o próximo, aparentemente. Mas pequei abusivamente contra mim mesmo, com maestria: sem liberdade, vida afetiva (muito menos sexual), correndo contra o tempo para ajudar a 'salvar' pais, amigos, parentes, desconhecidos, enfim, o mundo. Lamento pela meia-dúzia de pessoas que convenci a entrar nessa (felizmente alguns caíram fora também), mas lamento mais ainda pela minha falta de amor próprio e confiança. Ironicamente, esses quatro anos e meio de 'guerra espiritual' me dariam calos para tocar a vida como um infiel condenado ao inferno.
Agora era livre para não obedecer pastor algum e tentar ser normal. O sexo-fora-do-casamento não era mais uma abominação, de modo que não precisava implorar perdão ao sentir tesão ou me masturbar, por exemplo. A princípio, ainda acreditava num deus, mais concebia-o de maneira muito diferente daquela(s) descrita nos livros bíblicos. Pensava comigo: 'não é possível que deus condene tão gratuitamente as pessoas ao inferno sem dar qualquer garantia ou uma segunda chance'. Hoje, simplesmente não creio em deus algum, seja um tirano louco, um patético incompetente ou um omisso desinteressado.
Quando às vezes converso com algum amigo ou conhecido que crê no deus cristão (ou seria deus abraâmico?) e conto um pouco das minha memórias, quase sempre se apressam em dizer: "você se decepcionou, entendo, mas religião é coisa de seres humanos falhos, deus está acima disso tudo". Olho pra cima, pra baixo, pra qualquer lado, não vejo deus algum, mas apenas nosso desejo de acreditar e nossa esperança de não sermos mais do que um animalzinho efêmero que tem consciência de sua breve existência. Sinto decepcionar os amigos, mas não é mágoa o que me afasta do cristianismo ou de qualquer outra religião - é simplesmente a falta de qualquer boa razão e de qualquer evidência para depositar esperança em qualquer crença que possa me consolar por ser efêmero e não ter pegado nenhuma colega de faculdade...
A igreja não estava nos seus melhores dias. Já havíamos descoberto (ou 'Deus teria mostrado') que não éramos os portadores da verdade absoluta, embora ainda discípulos de Jesus Cristo; o 'irmão' que escreveu um longo tratado expondo os podres do 'Reino', um inglês, falava até de 'acabar com a Pax Americana', tendo em vista que o líder maior do nosso movimento era um americano (quem já foi dono de parte da África, da América e da Ásia sabe o que é imperialismo, né?). Mesmo assim, ao contar para alguns 'irmãos' que eu não pretendia voltar no próximo culto, ouvi sermões cheios de preocupação pela minha alma.
Havia alguns meses - mais precisamente, desde maio de 2003 - que minha rotina como membro do 'Reino' era um pouco menos neurótica: fui desobrigado de ter um discipulador (vide meus capítulos iniciais), não me cobravam números de evangelismo nem por quantas horas eu havia orado e lido a Bíblia. Isto, no entanto, não tornava mais leve o clima da igreja: mágoas vieram à tona, fofocas chegavam aos ouvidos de todos e a própria falta do controle rígido, ao mesmo tempo que comemorada, deixava todos meio atônitos: "como vamos agir agora?".
Até vigília fizemos, com direito a picadas de abelha e muita dor nas costas. Eu e alguns outros universitários (vide caps. 4 e 5) passamos todo o período de faculdade como 'discípulos'. De modo geral, fomos fiéis a deus o suficiente para estragarmos amizades, ouvir piadinhas e, é claro, não pegar ninguém (quando uma colega me deu mole no curso de Jornalismo, sem dúvida era o diabo me tentando - Thiago, seu gênio...). Era difícil socializar direito com os outros quando você via a todos como futuros habitantes do inferno, sendo que você próprio poderia perder seu ticket se o 'coração endurecesse pelo pecado'.
Graças à minha fidelidade de ovelinha, pequei muito pouco contra deus e o próximo, aparentemente. Mas pequei abusivamente contra mim mesmo, com maestria: sem liberdade, vida afetiva (muito menos sexual), correndo contra o tempo para ajudar a 'salvar' pais, amigos, parentes, desconhecidos, enfim, o mundo. Lamento pela meia-dúzia de pessoas que convenci a entrar nessa (felizmente alguns caíram fora também), mas lamento mais ainda pela minha falta de amor próprio e confiança. Ironicamente, esses quatro anos e meio de 'guerra espiritual' me dariam calos para tocar a vida como um infiel condenado ao inferno.
Agora era livre para não obedecer pastor algum e tentar ser normal. O sexo-fora-do-casamento não era mais uma abominação, de modo que não precisava implorar perdão ao sentir tesão ou me masturbar, por exemplo. A princípio, ainda acreditava num deus, mais concebia-o de maneira muito diferente daquela(s) descrita nos livros bíblicos. Pensava comigo: 'não é possível que deus condene tão gratuitamente as pessoas ao inferno sem dar qualquer garantia ou uma segunda chance'. Hoje, simplesmente não creio em deus algum, seja um tirano louco, um patético incompetente ou um omisso desinteressado.
Quando às vezes converso com algum amigo ou conhecido que crê no deus cristão (ou seria deus abraâmico?) e conto um pouco das minha memórias, quase sempre se apressam em dizer: "você se decepcionou, entendo, mas religião é coisa de seres humanos falhos, deus está acima disso tudo". Olho pra cima, pra baixo, pra qualquer lado, não vejo deus algum, mas apenas nosso desejo de acreditar e nossa esperança de não sermos mais do que um animalzinho efêmero que tem consciência de sua breve existência. Sinto decepcionar os amigos, mas não é mágoa o que me afasta do cristianismo ou de qualquer outra religião - é simplesmente a falta de qualquer boa razão e de qualquer evidência para depositar esperança em qualquer crença que possa me consolar por ser efêmero e não ter pegado nenhuma colega de faculdade...