sexta-feira, janeiro 20, 2012

"Memórias...", capítulo 13

CAP.13 - O ÚLTIMO (ATÉ QUE EU ESCREVA OUTRO)

Novembro de 2003. Seria a última vez em que sairia da Casa do Marinheiro, em pleno domingo à tarde, e cruzaria aquela rua comprida que começa à beira da Avenida Brasil até chegar no ponto final do 485 - para retornar da Penha, onde a igreja se reunia, até Botafogo, bairro onde eu morava com minha família de perdidos. Não foi uma volta fácil: além do calor daquele dia (com o perdão da palavra) infernal, uma 'irmã' tagarela me acompanhava - felizmente, só até eu pegar o ônibus.

A igreja não estava nos seus melhores dias. Já havíamos descoberto (ou 'Deus teria mostrado') que não éramos os portadores da verdade absoluta, embora ainda discípulos de Jesus Cristo; o 'irmão' que escreveu um longo tratado expondo os podres do 'Reino', um inglês, falava até de 'acabar com a Pax Americana', tendo em vista que o líder maior do nosso movimento era um americano (quem já foi dono de parte da África, da América e da Ásia sabe o que é imperialismo, né?). Mesmo assim, ao contar para alguns 'irmãos' que eu não pretendia voltar no próximo culto, ouvi sermões cheios de preocupação pela minha alma.

Havia alguns meses - mais precisamente, desde maio de 2003 - que minha rotina como membro do 'Reino' era um pouco menos neurótica: fui desobrigado de ter um discipulador (vide meus capítulos iniciais), não me cobravam números de evangelismo nem por quantas horas eu havia orado e lido a Bíblia. Isto, no entanto, não tornava mais leve o clima da igreja: mágoas vieram à tona, fofocas chegavam aos ouvidos de todos e a própria falta do controle rígido, ao mesmo tempo que comemorada, deixava todos meio atônitos: "como vamos agir agora?".

Até vigília fizemos, com direito a picadas de abelha e muita dor nas costas. Eu e alguns outros universitários (vide caps. 4 e 5) passamos todo o período de faculdade como 'discípulos'. De modo geral, fomos fiéis a deus o suficiente para estragarmos amizades, ouvir piadinhas e, é claro, não pegar ninguém (quando uma colega me deu mole no curso de Jornalismo, sem dúvida era o diabo me tentando - Thiago, seu gênio...). Era difícil socializar direito com os outros quando você via a todos como futuros habitantes do inferno, sendo que você próprio poderia perder seu ticket se o 'coração endurecesse pelo pecado'.

Graças à minha fidelidade de ovelinha, pequei muito pouco contra deus e o próximo, aparentemente. Mas pequei abusivamente contra mim mesmo, com maestria: sem liberdade, vida afetiva (muito menos sexual), correndo contra o tempo para ajudar a 'salvar' pais, amigos, parentes, desconhecidos, enfim, o mundo. Lamento pela meia-dúzia de pessoas que convenci a entrar nessa (felizmente alguns caíram fora também), mas lamento mais ainda pela minha falta de amor próprio e confiança. Ironicamente, esses quatro anos e meio de 'guerra espiritual' me dariam calos para tocar a vida como um infiel condenado ao inferno.

Agora era livre para não obedecer pastor algum e tentar ser normal. O sexo-fora-do-casamento não era mais uma abominação, de modo que não precisava implorar perdão ao sentir tesão ou me masturbar, por exemplo. A princípio, ainda acreditava num deus, mais concebia-o de maneira muito diferente daquela(s) descrita nos livros bíblicos. Pensava comigo: 'não é possível que deus condene tão gratuitamente as pessoas ao inferno sem dar qualquer garantia ou uma segunda chance'. Hoje, simplesmente não creio em deus algum, seja um tirano louco, um patético incompetente ou um omisso desinteressado.

Quando às vezes converso com algum amigo ou conhecido que crê no deus cristão (ou seria deus abraâmico?) e conto um pouco das minha memórias, quase sempre se apressam em dizer: "você se decepcionou, entendo, mas religião é coisa de seres humanos falhos, deus está acima disso tudo". Olho pra cima, pra baixo, pra qualquer lado, não vejo deus algum, mas apenas nosso desejo de acreditar e nossa esperança de não sermos mais do que um animalzinho efêmero que tem consciência de sua breve existência. Sinto decepcionar os amigos, mas não é mágoa o que me afasta do cristianismo ou de qualquer outra religião - é simplesmente a falta de qualquer boa razão e de qualquer evidência para depositar esperança em qualquer crença que possa me consolar por ser efêmero e não ter pegado nenhuma colega de faculdade...

quinta-feira, janeiro 05, 2012

"Memórias...", capítulo 12

CAP. 12 - SUPERSTIÇÃO É COISA DE CRISTÃO

Entrei o ano de 2012 de nosso senhor adotando uma gata totalmente preta, pretíssima. Uma criatura linda assim era considerada diabólica na Idade Média, e até hoje, para muitos, um símbolo de mau agouro. Parece-me que gato preto realmente dá azar - azar para o próprio bichano, que é discriminado e temido feito um filhote do capeta.

As superstições são inúmeras por este mundo - e muitas são hilárias pelo que são e por como se tornaram: gato preto, leite com manga, número 13, espelho quebrado, guarda-chuva aberto em casa, dar três pulos para São Longuinho, passar por debaixo de uma escada...e tantas outras que fazem parte de nossa cultura ou da cultura alheia. Há muitos religiosos que consideram isso tudo pura idolatria, atitudes de um perdido - vide o nosso cristianismo, sempre na berlinda deste ex-fanático que vos fala.

Não acredito em nenhuma superstição da qual tenho conhecimento, mas não venham me sacanear com o desafio da garota morta do espelho! Sou racionalmente um cético, mas guardo os meus medos infantis - e se visse o que na tradição se considera um fantasma, provavelmente daria um berro, ou ficaria petrificado, em vez de dizer ao suposto espectro "oi, você é uma projeção da minha mente". Mas o gato preto eu acho lindo, o 13 é número de sorte, e passar debaixo da escada só é perigoso para mim se alguém está pintando em cima dela.

O que todo este papo tem a ver com meu período como 'salvo' e 'discípulo de Jesus Cristo'? Na igreja, como disse mais acima, considerávamos as superstições um monte de bobagens, de quem não tem um 'relacionamento com Deus'. Um verdadeiro cristão não teme nem dá importância a nada disso. É que nossas superstições, na verdade, tinham outros nomes: (pedir e dar) conselhos, apoiar os irmãos no púlpito, orar pedindo 'em nome Cristo'.

Sobre os 'conselhos', falei no capítulo 2 destas memórias - eram quase sempre ordens, pitacos, ameaças. Orar pedindo em nome de Jesus Cristo é um hábito muito forte entre os protestantes em geral, seguindo a fala do salvador em alguns Evangelhos: "o que pedires ao Pai, peças em meu nome" porque "ninguém vem ao Pai senão por mim". É por isso que deus não atende as orações judaicas e islâmicas pelo fim do conflito na Palestina, suponho. Deve ter sido o Diabo quem ajudou Gandhi na independência indiana e deu uma força ao Dalai Lama na fuga para o Tibet.

Porém, na minha ex-igreja, o traço mais característico de que acreditávamos em superstições era o irritante e grotesco 'conselho' que recebíamos - e colocávamos em prática - de 'apoiar o irmão que pregava'. Consistia em falar ou mesmo berrar "vamô lá Fulano", "prega meu irmão", "amém", "isso" e expressões semelhantes enquanto o cara discursava do púlpito (O cara, pois as mulheres só podiam pregar para outras mulheres em cultos exclusivos para elas). Já viram filmes de igrejas evangélicas de negros no Mississipi? Era igual, só que sem música da mesma qualidade. E os mais tímidos que se virassem para seguir o 'conselho' e apoiar cheio de vergonha.

Essa prática embaraçosa, por si só ridícula, gerava situações hilárias em alguns momentos. Tinha gente que se engasgava, em dúvida entre um "prega", "amém", "é verdade, Beltrano", e saía "prém", "amrebga", ou apenas "éééé". Havia os que berravam enquanto o pregador bebia um gole d'água, mais parecendo um impaciente "abre a matraca, meliante" do que apoio ao abençoado palestrante. Mas o supra sumo do risível era quando o irmão te respondia do púlpito: numa pergunta retórica do pregador, eis que alguém na platéia dizia "boa pergunta, meu irmão" - e o cara devolvia! "É verdade, João das Couves, é uma boa pergunta": as risadas coletivas eram inevitáveis, e o irmão ou irmã virava um ponto vermelho na multidão.

Eu me sentia num misto de estádio de futebol - onde se fala demais, por qualquer bobagem - e consulta coletiva a um fonoaudiólogo. Os irmãos mais 'espirituais', milagrosamente, berravam mais que todo mundo e não ficavam roucos. Já quem vos fala, às vezes arranhava a garganta num mísero "amém". Era necessário fé para acreditar que aquele coral de berros ajudava o pregador; pensando bem, devia ser uma massagem no ego dos caras - nunca saberei, pois felizmente nunca preguei do púlpito para a igreja (minhas idiotices se restringiam ao grupo universitário).

Prezado leitor hipotético, se um dia chegar a você a notícia de que alguém foi expulso do Teatro Municipal carioca por berrar durante o espetáculo, a notícia poderá ter sido sobre mim. É que nunca fui àquele teatro e, pela falta de prática, poderei ser pego berrando "VAMÔ LÁ, MAESTRO", "ISSO, RACHMANINOFF!". Superstição cristã, nada demais.