quinta-feira, agosto 30, 2012

"Memórias...", capítulo 19

CAP 19 - DEUS É PAI, NÃO É MÃE





A misoginia é um traço marcante de diversas doutrinas religiosas, e assim também ocorre com o cristianismo em sua esmagadora maioria de vertentes. No 'Reino' do qual eu fazia parte, só havia espaço para rei(s), príncipes e vassalos - especialmente vassalos. A desconsideração pela mulher e o medo de compartilhar poder com elas era tal que muitas vezes superava o próprio desprezo pelo gênero humano, outra característica fortíssima de quase todas as doutrinas cristãs que se apresentam.




Teria dito o papa João Paulo I que 'Deus é mãe'. Ousado, podemos dizer. Mas pergunte a um católico afiado com os ensinamentos da 'Santa Igreja' se pode haver papisa, 'cardealisa', 'bispa' ou mesmo se uma madre pode ter autoridade sobre um padre. Pergunte quem decide acerca de preservativos, aborto e quaisquer outras questões sobre as quais as mulheres deveriam ser as primeiras (e às vezes, as únicas) a serem ouvidas. Chega a ser sarcástica a adoração obsessiva à mãe de Jesus - ou talvez não, já que ela simboliza toda a submissão que se espera do sexo feminino.




O mesmo se pode dizer dos protestantes em sua absoluta maioria. Experimente orar à 'Mãe' em vez de ao 'Pai' durante um culto qualquer (numa igreja católica você pode escapar por pensarem que se trata de Maria). Experimente dizer que a Senhora, e não o Senhor, operou um milagre. Assim como os doutrinadores católicos, ainda que com as diferenças que os convêm, os evangélicos sacarão um pensamento de Paulo, falarão dos doze homens chamados apóstolos, irão até o livro de Gênesis mostrar como Eva foi criada a partir de Adão (esquecendo as contradições do texto) e que foi a mulher quem deu ouvidos à cobra e induziu o pobre macho a comer o fruto.




Na minha igreja, o bendito 'Reino' que não passava de mais uma denominação neopentelhocostal, a mulher tinha de saber o seu lugar: ser submissa ao homem, pois este é que foi feito pelo 'Pai' para liderar a congregação no seu trabalho de imitar o 'Filho'. Cabia às mulheres 'apoiá-los', 'respeitá-los'; uma mulher não podia pregar para um homem, e mesmo uma criatura brilhante, se tivesse vagina, deveria reconhecer a proeminência dos babacas com cromossomo Y. Quando criança, eu pensava em deus como um homenzão barbudo controlando tudo do céu; no 'Reino' isso não mudou, até sofisticou-se: praticamente dava para ouvir o 'roc, roc' de deus coçando seu saco imenso.




Dirão alguns haver denominações que admitem pastoras, algumas com grande poder sobre a congregação; vá lá, há quem realmente se esforce para apresentar uma doutrina menos machista, mas a visibilidade desses (dessas) é muitíssimo menor - e mesmo assim, saem da boca de boa parte dessas líderes palavras como 'submissa' e 'Pai' com a maior naturalidade. Refletem os próprios textos bíblicos e o patriarcalismo que grassava naqueles tempos, bem como a própria acomodação e resistência da sociedade que as cerca.




Lembro-me de uma historinha - a qual presenciei - que ilustra muito bem essa misoginia envernizada daquela igreja, que permitia toda sorte de explanações imbecis. Num fim de semana, passeando com alguns 'irmãos' e 'irmãs', um débil mental me solta a tese, como prova do viés masculino de deus, de que mesmo nas sociedades pagãs ficava claro que aquelas cujo deus predominante era do sexo masculino sobrepujavam às que tinham uma deusa como ser supremo. Ao que até uma irmã que passeava conosco mordeu os lábios de irritação.




Não pense você , leitor hipotético, que sou contra o reconhecimento de diferenças entre os sexos - só me oponho à idéia ridícula de hierarquizá-los em nome da obediência a quem quer que seja. As mulheres (e homens) que têm interesse em permanecer cristãos mas não são estúpidos de acreditar na superioridade divina dos testículos é que devem questionar seus sacerdotes, se quiserem. Fico eu, na verdade, pensando em quanto tempo vivi essa infantilidade e aceitei o papo furado de quem me garantia que Papai do Céu, o Senhor, tinha um plano para os machos e fêmeas - sendo o dos machos um tantinho melhor, já que poderíamos ser o filho da puta que manda em vez de ser a puta-que-pariu-e-obedece.

quinta-feira, agosto 02, 2012

Voltando a 'poetear'

Tu (poema idoso)



Cheio de um triunfo amargo

ao olhar a lápide dos loucos

que ousaram



Não há outra chance

de sentir-se dono

de si mesmo

Rir, blasfemar

em vão, única razão



Cumpres teu dever

Fazes tua parte

Obedeces ao medo

Completas as frases



Teria

Faria

Seria

Poderia

Viveria

Os verbos estraçalham-te outro dia




De algum modo escolhido

Gameta iludido

Embrião falaz

E ainda és jovem

Para sempre serás