domingo, fevereiro 20, 2005

Sobre "Laranja mecânica"

Ontem assisti a "Laranja Mecânica", de Stanley Kubrick. Penso que é um belo ensaio cinematográfico sobre a violência e o cinismo do mundo civilizado. O olhar do "protagonista" cumpre metade do que devem ter sido os objetivos do diretor americano. Mas o filme não seria contundente como é sem o grotesco de estupros ao som de Beethoven, os gritinhos de excitação dos arruaceiros, as gíras descaradamente "inspiradas" em idiomas soviéticos, a caritura grotesca da sociedade ocidental tão sofisticada - caricatura, aliás, tão caricata que supera em realismo muitos documentários "engajados".
Somos todos violentos, muito violentos - nenhuma novidade nisso. Mas parece ter valor a capacidade de se enojar de tanta violência que produzimos ou deixamos produzir em nome de interesses econômicos e mesmo em nome "do bem-estar da sociedade", "da moral e dos bons costumes". Alex, o "herói" da película, é sensível, inteligente, como você. É perverso, como quem? Ora, ele tem desejos e os quer satisfazer. Ele quer o prazer que dá significado à sua vida. O diretor da penitenciária para onde Alex vai quer cumprir sua missão perante a opinião pública. Todos só querem se sentir bem. Moloko é uma espécie de RebBull turbinado. "Laranja Mecânica" ainda resiste ao tempo; serve, pleo menos, para que os donos da razão não se levem tão a sério.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Conto reles

A FICÇÃO NO CENTRO DO RIO

Bem barato, instigante e pouco arriscado – ainda que o suficiente pra deixar minha mãos levemente gélidas. Saí decidido do trabalho; não, minto, estava decidido mesmo quando lembrei de um cara que panfletava esse serviço naquela área, perto do metrô e longe o suficiente do meu “Big Brother Imaginário”. “Só 10 reais, pra mim que costuma pagar 50, até 80...”, pensei de novo.

Aí atravessei aquelas ruas todas até avistar um daqueles caras. “É impressionante! Quando eu não estou nem um pouco afim sempre aparece um; agora que eu decidi, uma dificuldade pra pegar o papelzinho...”. O cara parecia preocupado com a polícia, mas devia ser só uma preocupação corriqueira – se não ele ficava mais escondido. “Porra, eu tive que PEDIR o papel pro infeliz. Ele não me viu passando? Não viu que eu podia estar afim?”. Bom, agora eu já sabia onde ficava.

Só faltava a coragem pra entrar, porque nessas horas você acha que todo mundo está te olhando. Um cara de uma loja que fica do lado do local, eu acho, até me olhava mesmo, mas talvez achando esquisito meus passos hesitantes. Passei reto, como se fosse pra outro lugar. Dei uma olhada pra trás. Rua tal, número cento e tal. “Vamo lá, ninguém tá se lixando pra você...”. Entrei no lugar, que na porta tinha uma falsa indicação de que seria um cabeleireiro. Fui andando pelo corredorzinho estreito, com umas curvas. Comecei a subir e a ouvir umas vozes. “Será que tem alguém conhecido lá dentro?”.

Carpete bege, luz vermelha – “luz vermelha...” – e meia-dúzia de meninas dançando um daqueles funks “proibidões”. Era um sujeito que ameaçava, berrando: “Vou passar cerol na mãããããooo!”. Algumas cantavam o resto da letra. Todas de calcinha e sutiã, exibindo os dotes – pelo que me lembro, não muito atraentes, mas o suficiente pra formar clientela. Olhei rápido para os lados; me sentia diferente daqueles caras, com aquelas caras de pobres famintos, doidos pra “dar umazinha’ e esquecer um pouco a sua triste condição.

Tinha mulher pra quase todo mundo; as outras estavam num barzinho atrás, fingindo querer namorar aqueles miseráveis, servindo Skol, enquanto outras estavam nos cubículos sendo consumidas mais uma vez. “Vem tesão, vô ti pegá de jeito”, diziam as dançarinas. “Ai, me fode gostoso, filho da puta, ai, tesão, mete, isso”, uma falava com o freguês em um dos matadouros. Tudo isso registrado em poucos minutos. Logo que eu me vi envergonhado, mas disposto a ficar, escolhi uma mulata magra, que parecia mais discreta e menos barriguda.

Enquanto entrava olhei de relance o cafetão, um careca forte, e um velho saindo satisfeito de outro cubículo.“Você com essa barba parece o Ed Motta”, falou a que eu escolhi. Meu maxilar, a essa altura, já estava rígido demais pra que eu fingisse descontração e conforto. O cubículo tinha um cheiro novo pra mim, mas previsível: fedor cheiroso, afinal, não há bom-ar que abafe a catinga de trocentos sujeitos por dia. Tirei a roupa e ela foi logo intervindo naquela região onde, diz a ciência, está o centro do prazer masculino. “Você já vai pôr a camisinha? Nem endureceu ainda”, retruquei. “Como é que eu vou chupar sem camisinha, querido?”. E assim foi. E enquanto ela rebolava eu ficava atrás, me roçando, cada vez mais apto.

Eu gosto de ver a mulher por cima, cavalgando, o esforço sexual que as deixa bem suadas e ainda mais apetitosas. “Ah, por cima não dá não. To trabalhando aqui desde manhã!”, explicou, e então abriu as pernas.“Posso ver teus peitos?”, pedi. “Pode, mas sem ficar pegando nem beijando”. Quando o coito começou, eu resolvi colar nela. Até que a mulata colaborou. Falou aquelas bobagens no meu ouvido esquerdo e deu umas mordidinhas, lambendo. Ela sabia dar prazer, mesmo cansada. Eu queria prazer, mesmo desconfortável.

Depois daqueles segundos de satisfação, dei os 10 reais e achei aquilo deprimente. Ela começou a cantarolar e perguntou, enquanto eu me vestia: “e aí, gostou, tudo bem? Dá um beijinho”, virou a bochecha direita. Quê que eu ia fazer? Depois, saí o mais rápido que pude e corri praquela avenida cheia de gente que é contra a prostituição e que jamais usaria, em prol de seu Id insaciável, uma pobre coitada sem cultura e sem perspectivas de vida digna. Gente como eu.

domingo, fevereiro 13, 2005

Filosofia e virtudes

Pequeno comentário sobre grandes virtudes pouco conhecidas por mim (com base no livro de André Comte-Sponville). O autor aprecia a teoria aristotélica de que as virtudes situam-se sempre entre dois vícios – um por excesso, outro por falta. For instance: a tolerância seria o meio-termo entre a complacência e a intolerância. Mas não vou seguir por esse caminho nas linhas que se seguem (a não ser que me veja sem saída!).

Polidez – não é exatamente uma virtude, mas a simulação destas – o que chamamos de “boa educação”. O objetivo ideal da polidez seria a capacitação ao exercício das virtudes. Assim, os pais ensinariam aos filhos o que se pode e o que não se pode (o que “é feio”) para que seus rebentos tomem consciência do bem e do mal e sejam capazes de agirem corretamente, e então espontaneamente da maneira certa, ao crescerem. Disse antes “objetivo ideal” porque a polidez, “os bons modos”, pode ser mero arremedo de virtude do qual os maus (ou muito pouco propensos ao bem, menos do que a média) servem-se para dissimular sua maldade – o que muitas vezes chamamos de “hipocrisia” – ou mesmo apenas requintá-la. Curiosamente, percebi com essa leitura que essa “subvirtude” sempre foi um dos meus fortes. Criança comportada, adolescente retraído – pelo menos durante a grande maioria do tempo -, adulto reservado. Há muito que falar sobre isso – em outra ocasião.

Fidelidade – sempre associada de imediato à vida conjugal, esta virtude vai muito além. Na verdade, seria “a virtude da memória”(A.C.S), ou seja, um constante lembrar, não esquecer do que é bom, do que merece ser lembrado. Alguém excelentemente fiel agiria sempre em consonância com seu passado – com o bem que conhece, virtuosamente – e não trairia – esqueceria ou rejeitaria mesmo lembrando – o bem e as pessoas de alguma forma relacionadas a ele. Não se pode ser virtuoso sem ser fiel às virtudes, sem conservá-las intimamente. Também, com certeza, pode-se ser fiel sem virtude, sem o bem como valor – como ser fiel a um tirano, lembra o autor. Confuso?Talvez esta minha definição não seja suficientemente sintética. A fidelidade é das mais difíceis virtudes a ser definida – do meu ponto de vista. Parece-me muito fluida, tipo de “coisa”, de qualidade, que apreendemos no ar e perdemos ao tentar encaixotá-la. As observações de Sponville sobre a confusão feita entre fidelidade e exclusividade são particularmente toantes e instigantes. Dei graças aos céus – no sentido metafórico – por não ser “comprometido”.

Prudência – A “moral aplicada” (ACS), o saber ser virtuoso, uma “virtude da inteligência” (acs). Não adianta apenas ter boas intenções, bons sentimentos, se não se sabe implementá-los. O prudente sabe como e quando agir de tal ou qual maneira, visando o bem – se fosse apenas visando seus interesses seria um calculista. Que ninguém confunda com precaução, que é apenas evitar o perigo. Às vezes pode ser prudente encarar uma “parada” e assim fazer o bem em vez de se omitir. Para ilustrar melhor, um “exemplozinho”: é certo corrigir alguém para o bem do mesmo, mas fazê-lo de qualquer maneira, ou no momento errado, é ser imprudente. Outro: é certo ajudar alguém viciado em drogas pesadas a largar seu vício destruidor, mas é imprudência tentar conversar num momento em que o viciado está incontrolável, querendo matar quem se aproxima. A prudência me ajuda a entender que os bons intuitos devem ser eficazes, caso contrário são inúteis – e até tolices. No tempo em que eu era cristão fui muitas vezes imprudente embora cheio de boas intenções – também fui muitas vezes intolerante, mas essa é uma outra questão.

Temperança – Quase o mesmo que moderação; é saber desfrutar dos prazeres sensuais (sexo, comida, etc....) na medida certa, sem excessos nem ascetismo (olhem o equilíbrio aristotélico!). O autor observa que, ao contrário da coragem, que se manifesta nos momentos de escassez, a temperança manifesta-se nos tempos de abundância. Muitos já ouviram falar dos bacanais, onde orgias e glutonarias “rolavam soltas”. No caso da comida, os participantes vomitavam os alimentos já consumidos, visando repetitivamente o prazer de consumir. Do sexo, não preciso falar. Qualidade de vida, e não quantidade de sensações: a questão do consumismo pós-moderno (e de todos os tempos) situa-se aí.

Coragem – Devo concordar com ACS: esta é a mais admirada das virtudes – mesmo que nem sempre sua manifestação seja virtuosa. Superação é o mote. Como virtude, a coragem é a superação de uma adversidade visando o bem, o que é nobre, o que é louvável. Obviamente, muitas maldades, para serem praticadas, necessitam coragem – mas nesses casos não há virtude. Suportar o medo, as vicissitudes, a dor, até a morte. Mas, por quê? Se o motivo é bom – e não, ou não apenas, bom para quem o faz -, se a causa é justa, a coragem é virtude.

Generosidade – Doar, dar o melhor de si, agir “como se amasse”(acs) aquele seu próximo. Seria uma virtude desnecessária entre os que se amam, acredita o autor; só precisamos ser generosos com quem não amamos, com quem os nossos sentimentos não nos impelem naturalmente a fazer tal ou qual bem. Ao sermos generosos, saímos de nós mesmos, do nosso egoísmo, e doamos com prazer. Com prazer puro – se não no ato em si, pelo menos no fato de estarmos fazendo o que é certo – pois agindo com segundas intenções não somos virtuosos, não somos generosos. Esta seria, na visão de acs, a virtude mais fácil de ser identificada como bondade. Também opõe-se à avareza, no que tange a bens materiais. Talvez seja a virtude que eu mais admiro, ou que eu mais persigo. Agir com generosidade, a meu ver, está ligado ao reconhecimento de si como alguém que pode e deve fazer o bem, e ao reconhecimento do outro como alguém a quem seu ato de oferta pode fazer uma diferença benéfica.

Justiça – Acho que em algum momento cheguei a pensar que justiça e virtude fossem o mesmo. Bem, ser justo é ser virtuoso, mas ser virtuoso é muito mais. Porém a justiça, assim como a coragem, é das virtudes mais populares. No entanto, ao contrário da outra, é boa em si mesma. Trata-se de dar a cada um o que lhe é adequado. Mas o que podemos dar se não tivermos nada? Talvez seja melhor dizer que a justiça assenta-se na eqüidade, no respeito aos direitos do outro. Assim, o ser humano excelentemente justo (já usei essa expressão, que descreve alguém que não existe) age sempre, em relação ao outro(s) como se estivessem em pé de igualdade, ou melhor, de uma forma que, se os dois estivessem em pé de igualdade, ambos poderiam concordar com tal ato sem prejuízo de ninguém. Seria uma virtude social, por estar imbricada às relações sociais – daí justiça social, por exemplo, a igualdade de oportunidades de desenvolvimento social para todos, pois todos merecem e precisam igualmente como seres humanos. Mas há também justiça com si mesmo – assim, para ilustrar, é justo alimentar-me bem, pois meu corpo necessita dos nutrientes. Pelo tanto que já foi escrito aqui, é fácil perceber a dificuldade de se demarcar os limites do que é justo e do que não é, pelo menos dentro de uma sociedade. Para concluir, parafraseio ACS: a justiça não existe, a não ser quando é praticada.

Compaixão – Sofrer com o outro é, sem dúvida, uma virtude. É mais do que sentir pena – que pressupõe um afastamento. A compaixão nos chama a sofrer com o sofrimento alheio, reconhecendo naquele uma dor que poderia ser sua – e que acaba sendo. Não há restrições quanto à natureza do sofrimento: o sempre compassivo o é diante de uma criança faminta na África como o é diante de seus torturadores – seria o exemplo de Cristo, “eles não sabem o que fazem”. Lamenta-se a dor da condição humana, em vez de julgá-la ou execrá-la. Por isso, compaixão e a misericórdia são tão próximas. A compreensão da “dor e da delícia de ser o que é” (Caetano) perpassa ambas.

Gratidão – Ser grato é alegrar-se com o que se recebe, reconhecendo que há uma generosidade acima de qualquer mérito pessoal. Uma resposta de contentamento ao bem recebido, sem hipocrisia nem ganância – como lembrou bem ACS, há os que agradecem apenas na ânsia de receberem mais. Por que não ser grato pela própria vida, mesmo que se tenha muito pouco além dela? O próprio viver, além de misterioso, continuará sendo gratuito. A gratidão é desafiante por causa de nossa “eterna” insatisfação.

Misericórdia – “A virtude do perdão”(acs). Perdoar não seria esquecer o mal sofrido, nem deixar de combater o mal, mas “cessar de odiar”, diz ACS. Aprendi, quando cristão, que perdoar significa doar até o fim. Tendo em vista que, etimologicamente, é isso mesmo, como se doa até o fim? Não se trata de generosidade, outra virtude, mas então o que é? Penso que a doação seria a consciência, a certeza, de que não se deve conservar o ódio por ter sido machucado. A vida é maior que o mal; nós somos maiores que o mal praticado ou sofrido. Sim, é isso mesmo, quem mais nos machucou também é! Muitas vezes é tão difícil crer nisso...

Tolerância – Mais acima, ao tratar da compaixão, citei um verso de Caetano Veloso. Talvez esse aplique-se melhor aqui. Ser tolerante é aceitar as diferenças de opinião – que englobaria gostos, preferências, hábitos, etc – desde que estas não inviabilizem o próprio exercício da tolerância. Assim, por exemplo, se Osama Bin Laden – ao que tudo indica – não engendrasse atos de terrorismo contra os “infiéis do Ocidente”, não teríamos por que combatê-lo; teríamos de respeitar suas opiniões, por mais sectárias, se não acarretasse em mal algum. Por isso o aiatolá Komeihni, quando apenas pregava no exílio na França, era inofensivo e tinha o direito de ter suas idéias sobre o “Grande Satã” americano respeitadas. Ao tornar-se um ditador teocrata, perdeu tal direito. Resumindo: o intolerante tem todo o direito de sê-lo, desde que com isso não prejudique ou impeça os tolerantes. Toleremos o mal, desde que não destrua o bem – ser tolerante não é ser complacente nem omisso. Stálin, Hitler, Mussolini, Mao-Tsé-Tung, etc. Esses são casos extremos, mas, no nosso dia-a-dia, volta e meia somos totalitários – embora quase sempre impotentes. Se alguém discorda disso, e de tudo o mais que eu disse ou disser, tudo bem...he,he...

Doçura – Foi muito bom “conhecer” essa virtude, entender melhor que ser doce é uma prática virtuosa. ACS acredita que a mulher e o Oriente são os que mais se aproximam da excelência da doçura. Desconfio dessa palavra, penso em mansidão, mas palavras são só palavras; não podem substituir a virtude em si. A não-violência de Gandhi é o grande exemplo contemporâneo: ele não tolerou a injustiça, mas a combateu mansamente. Ser virtuoso, ser justo, enfim, ser contra o mal e assim o agir não implica necessariamente em ser duro como a mão poderosa e inflexível dos deuses vingadores. Daí o lema da doçura na visão de Sponville: “faça o bem, com o mínimo de mal possível”. Se a justiça não violenta é possível, se é eficaz, ou mais eficaz que a justiça “durona”, deve ser implementada. As questões dos direitos humanos vão por aí: não se trata de anuir com os criminosos, mas punir o mal sem destruir o malfeitor, que afinal é um ser humano passível de mudanças para melhor. Mas e se este criminoso for irrecuperável? ACS levanta essa difícil interrogação, opinando que a pena de morte pode ser realmente o melhor nesses casos. É de fato dificílimo, pelo menos para mim. Bem, parece-me que mesmo nesse caso a doçura poderia aparecer, com uma morte rápida e “indolor” (se é possível) no lugar de um linchamento ou uma tortura.

Pureza – Outra virtude demasiado fluida. Seria um desejar sem mal, inocente, pelo que entendi. Por isso o aspecto sexual entra como a melhor maneira de explicá-la: o desejo que sentimos por uma mulher atraente, quando a vemos andando na rua, por exemplo, seria impuro por que não é inocente; queremos possuí-la, tomá-la para nós. A impureza não se regozija com a mera existência daquele “objeto”, mas quer tê-lo – daí a famosa expressão “segundas intenções” quando usada nesse âmbito. O olhar puro, manifestação da pureza, estaria por exemplo na contemplação de uma bela música ou uma estonteante paisagem; na pura admiração a uma pessoa, pelo que ela é; naquele sentimento refrescante ao olharmos crianças brincando, vivendo a inocência e os espanto com o mundo que já não temos. Até ao cantarmos o hino nacional podemos ser puros! “Pátria amada, Brasil!”. No amor ao saber, também. Sponville utiliza-se de uma frase brilhante: “gostaríamos que aquilo existisse, e existe!”. Que desafio é ser puro, não?

Simplicidade – Talvez a virtude mais difícil de definir; talvez, porque seja sempre “subliminar”. Despretensão seria o mote. Ser o que se é, sem tentar parecer outra coisa. Não se trata de negar a complexidade existente e sim de não ser ambíguo. Agir com simplicidade, sem alardes nem complicações desnecessárias. Somos o que somos, mesmo que seja difícil entender-nos; somos o que somos, mesmo que a cada dia descubramos algo novo. Afinal, para que fazemos tudo o que fazemos e pensamos tudo o que pensamos? Muito provavelmente, acredito, porque o objetivo da vida é a felicidade – objetivo simples, não simplório. Sem esta simplicidade, tudo o que fizermos perde o sentido.

Humildade – “Lembra-te que és pó, e ao pó voltarás”. Mais ou menos assim teria dito Deus a Adão. Mas não é preciso crer na Bíblia para refletir sobre essa virtude. Ser humilde é, basicamente, reconhecer suas limitações, reconhecer o que se é. A teoria aristotélica é formidável para esta explicação: o humilde situa-se entre o soberbo ou vaidoso (que se crê maior do que é) e o que se menospreza, rebaixando-se. O humilde nunca se rebaixa, mas apenas aceita que não poderia ser melhor do que é – ao menos naquele momento, já que todos podemos progredir. Desse modo, humilhar-se e ser humilde não seriam o mesmo. Como não crente, ACS critica a concepção judaico-cristã de humildade. Não vou entrar nesse mérito. Podemos, no entanto, fazer várias ilustrações. Uma das mais fáceis é a de quem pede ajuda por reconhecer que sozinho não pode fazer algo. Mas se trata de um exemplo perigoso: muitas vezes não é humildade, mas apenas conveniência. Dada a existência da falsa humildade, a verdadeira, a virtude, parece realizar-se muito mais no íntimo do que nas ações externas. No caso do agir, do demonstrar humildade, o maior exemplo é mesmo o reconhecimento sincero de que não se é humilde.

Boa-fé – Conformidade entre o que chamarei de vidas exterior e interior – entre agir e pensar. Transparência seria o mote. Penso que há uma proximidade muito grande entre esta virtude e a simplicidade – e também com a fidelidade. Mas também parece haver suficientes diferenças: ser de boa-fé é viver realmente de acordo com o que se acredita, sem representar papéis – pois é, nenhuma virtude é fácil. E não é só isso: é preciso amar a verdade. Assim, alguém de boa fé ama a verdade e vive com base nela, pelo menos no que crê ser a verdade – como não é “a verdade dele”, mas a verdade em seu estado puro, há também a viva disposição em abandonar as crenças superadas. Sponville usa a expressão “sinceridade reflexiva”, significando que além da sinceridade com o outro é fundamental ser sincero consigo mesmo. Essa virtude “lado B”, de fato, enseja muitas polêmicas. Primeiro porque é possível estar completamente enganado e ser de boa-fé – um fanático religioso que pratica barbaridades crendo sinceramente que sua doutrina é o bem, a verdade, é um homem mal? A boa-fé é virtude nele? É realmente possível haver canalhas de boa-fé? ACS diz que sim, mas a princípio não o apóio. Ele também levanta questões interessantíssimas envolvendo pensamentos de grandes filósofos como Kant e Sartre. Por exemplo: há mentira de boa-fé? Seria o caso de mentir para salvar um inocente, por exemplo? Devemos amar a verdade acima de tudo?

Humor – Uma virtude muito popular, mas não como virtude, ou não levada tão a sério para ser vista como virtude – aqui caio em contradição? “Desilusão alegre”, bela definição do autor. Ter humor é não levar a vida mais a sério do que se deve. Não se trata de zombar da seriedade, mas apenas de não entrona-la. Afinal de contas, ser tão sério é inútil – e “ridículo”, diz ACS. Por que cair em desespero, se nada indica que vale a pena? “O sorriso da razão”, o humor, traz leveza à vida, proporciona mais alegria! Podemos rir de nós mesmos, de toda essa ânsia por saber, podemos relaxar um pouco! Não vamos esquecer de tudo o que nos instiga, mas apenas gracejar carinhosamente. Humor não é ironia: esta zomba, fere, menospreza e, como observa Sponville, leva a si mesmo a sério como se merecesse esse cuidado. Lembrei-me agora de uma piadinha que dá pista do que seja ser “humorado”, ou bem-humorado: “não leve a vida tão a sério; você não vai sair dela vivo mesmo...”. Não sejamos frívolos nem inconseqüentes, mas por que a gravidade? O bom-humor é amigo da simplicidade, só que é mais despojado. Se o humor é “virtude acessória”, não fundamental, como crê o autor, eu o compararia a um acessório tão fácil de se obter e tão fácil de usar que pode estar conosco permanentemente, sem sequer nos darmos conta.

Amor – Se a polidez simula as virtudes, porque não chega a ser uma, as virtudes simulam o amor, que está além delas. Não precisaríamos então, diante de quem amamos, praticar as virtudes, pois o amor as substitui – ou, de certa forma, as contém e supera. A mãe que ama o filho não é generosa nem misericordiosa com ele; apenas o ama, e todo o bem que faz é conseqüência desse amor. Mas o amor costuma andar disfarçado entre nós – ou melhor: temos dificuldade em defini-lo com segurança. Paixão? Benevolência? Amizade? Caridade? Dentro da tradição ocidental, que até hoje se apresenta como a melhor, o que chamamos amor manifestaria-se de três maneiras:

Amor “Eros” – É o amor apaixonado, ou a paixão amorosa, tão discutida no clássico “O Banquete”, de Platão. O amor dos casais, o amor “Romeu e Julieta” e de todos os milhões de textos “românticos” (palavra arriscada de se usar, mas que aqui é fácil de se compreender). Seria o amor que se desenvolve na falta do outro; um amor muitas vezes desesperado, angustiado, angustiante. Também é, quase sempre, o primeiro amor, o início. É a atração irresistível que muitos homens e mulheres sentem um pelo outro – mas não apenas no sentido sexual. O medo de nunca mais ter o outro que se ama também é característica desse amor – daí vemos que é possível, de fato, ser apaixonado pelos filhos, por exemplo, sem que isso seja incestuoso. Eros é um amor louco, faminto. Não existe para durar muito, a não ser que nunca se realize – Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, só pela infelicidade podem ser “eternamente” apaixonados. O amor duradouro é o que ultrapassa o Eros e solidifica-se em Philia.

Amor “Philia” – Diferentemente de Eros, Philia é um amor que não se regozija com a posse do outro, mas com a existência do outro. Seria um amor mais maduro, talvez; mais estável, com certeza. O amor dos casais que deram certo, o amor familiar, o amor dos amigos – ou a própria amizade. Um amor que se desenvolve no partilhar, na troca, na convivência, na cumplicidade. Lembremos de Filosofia: amor ao saber. Acredito que seja possível nos apaixonarmos pelo saber, mas a paixão não basta; é preciso haver a doce convivência. Nesse amor enxergamos melhor – bem melhor – as virtudes por excelência, ou a excelente superação delas.

Amor “Ágape” – Ainda há um outro tipo de amor – um outro estágio, ainda mais impressionante. É o amor geral, irrestrito, o amor pelo próximo – por todos os próximos. Seria, na acepção de alguns pensadores, a caridade, o amor universal. “Que adianta amar os seus amigos? Os fariseus e cobradores de impostos também fazem isso”. Assim Cristo teria interpelado seus ouvintes ao falar da necessidade de amar o próximo como a si mesmo. Crentes ou não, somos razoáveis admitindo que, de fato, amar nossos amados – nossos amigos, nossa família, nós mesmos – é muito mais fácil que amar um qualquer. Sponville observa várias vezes que amar é um ato espontâneo, ou melhor, que não escolhemos amar como decidimos praticar uma virtude, um bom ato – daí mesmo as virtudes, para substituir um desamor reinante. Mas o amor ágape é mais que virtude: é o cume. Em nossa aventura humana raramente ousamos dizer que alguém alcançou a caridade: um santo, um iluminado, Cristo, Buda, mais alguém? E será que foi assim mesmo? Entretanto, algo nos diz – razão, intuição? – que este é o topo da montanha. É amor mesmo, amar o vizinho como amamos nossos filhos queridos; amar alguém que você apenas viu passar da mesma maneira que você se ama! Talvez um amor que se encolha para dar espaço ao outro, à existência do outro – indo além do regozijo diante daquela outra existência. Dizê-lo alcançável pode parecer hipocrisia, mas considerá-lo mero devaneio utópico talvez seja cinismo.

Qualquer coisa

No momento, não tenho nada de importante a declarar. Isto é apenas um teste.