sábado, março 01, 2008

Do 'antiflamenguismo'

Sempre estamos discutindo, seriamente ou de maneira pueril, sobre diversas manifestações preconceituosas e/ou discriminatórias neste país e neste mundo. Do que vou falar agora vale escrever uma tese, um ensaio sociológico - se é que já não escreveram. Eu vou ser breve, até porque escrevo com um pouco de pressa - mas não com pressa suficiente para protelar novamente meu relato e desabafo. Aliás, talvez não haja uma data melhor do que esta, o aniversário do Rio. Falemos um pouco sobre o fenômeno do antiflamenguismo.

Comentar sobre futebol é muito útil: jornais são vendidos aos montes, conversas são iniciadas (e terminadas, às vezes tragicamente), enfim, se emitir nossas fantásticas opiniões sobre verdade, beleza e justiça é mesmo importante, o esporte nº1 do Brasil presta relevante serviço. E nada como uma final de campeonato - ainda que seja uma taça que apenas garante um vice-campeonato - para exercitarmos nosso falatório: Flamengo x Botafogo, taça Guanabara. Pudemos vivenciar cenas dramáticas, com direito a choro, acusações e provocações; mas, desconfio que foi mais uma oportunidade da 'doutrina antiflamenguista' ser difundida.

O 'juiz' roubou? O 'juiz' não roubou? Pouco importa para quem faz de uma espécie de rancor uma de suas convicções: 'o Flamengo não presta'. O time mais querido do Brasil é também o mais odiado. Sem entrar no mérito da tal proximidade entre ódio e amor, posso afirmar que tenho motivos para dizer que existe neste país preconceito (e, por conseguinte, discriminação) em relação ao Flamengo e seus torcedores. Muita gente já deve ter ouvido piadas sobre o assaltante que torce para o 'framengo' ou coisas similares, associando essa paixão futebolística a ignorância, truculência e delinqüência. Eu tive uma prova (só uma mesmo?) de que isso é real.

Aso dez ou onze anos, quando estava atravessando um sinal de rua próximo à minha casa, vi que um senhor precisava de ajuda. Por educação, pelo que já havia aprendido com pais e professores, fui ajudá-lo; ele estava carregando bolsas meio enrolado e preocupado, de modo que minha ajuda foi de algum valor. Chegamos do outro ladoda rua e ele, após me agradecer, perguntou: "tu deves ser vascaíno não é? Ou tricolor, é um rapaz educado...", ao que eu respondi "não, meu senhor, torço pro Flamengo". Ele fez cara de espanto: "flamenguista? Hmmm, tá...", e seguiu seu rumo.

Na época do ocorrido achei até meio engraçado que alguém tentasse adivinhar sua preferência futebolística a partir do seu comportamento; mas depois, na convivência com colegas de escola, vi que era comum associar o Flamengo a tudo isso que mencionei antes; passei a perceber claramente os sentimentos de muitos dos meninos tricolores, vascaínos e botafoguenses em relação ao seu maior rival. Sentia que vários simplesmente odiavam o Flamengo. Dizem alguns que isso se dá pelo fato de o 'urubu' ter a maior torcida e mais títulos que os rivais cariocas, sendo as piadas meras provocações. Eu desconfio que não é só isso, ou melhor, que isso vai além.

Já ouvi discursos do tipo 'o Brasil é uma droga, não é à toa que tem tanto flamenguista'. Parece-me mesmo um 'desperzo pela ralé', algo que vai além de um despeito. A polêmica em torno da final da Taça Guanabara reavivou 'teoriazinhas' antiflamenguistas: "o Flamengo sempre vence com a ajuda do juiz", porque "tem muita torcida", e torcida rubro-negra "é antiética". Mesmo quando a maioria dos jornalistas reconhece que a arbitragem não foi a ladroagem apregoada pelo adversário, isto é visto como mais uma prova a favor do ódio ao 'urubu ladrão': "a imprensa favorece o Flamengo, porque tem mais flamenguista". Quer provas? Entre nas diversas comunidades do orkut "eu odeio o Flamengo" e leia o que é escrito: há muita gozação inocente, sim, mas há verdadeiros delírios, uma verdadeira demonização.

Fico imaginando como se sente um morador de favela alvinegro, tricolor, vascaíno ou de qualquer outro time quando sua torcida provoca a do Flamengo gritando "ela, ela, ela, silêncio na favela!". Será que ele acha engraçado? Como rubro-negro e cidadão, deixo meu depoimento sobre isso que julgo ser uma celebração da ignorância, não obstante todos os méritos do bom-humor que é típico do carioca, pois afinal o futebol não pode ser levado tão à sério quanto a questão de como enxergamos nossos preconceitos.

Envelheço na cidade, envelheço com a cidade

Rio de Janeiro, cidade fundada em 1º de março de 1565 por Estácio de Sá.

Thiago Augusto Araujo Bastos, criatura parida em 1º de março de 1981 por Ana Lucia Araujo.

Eu já morei no bairro chamado Estácio (de Sá).

Meus pais são baianos de uma mesma cidade, Ilhéus, mas não se conheciam lá; conheceram-se aqui no Rio, e aqui seguem vivendo. Então, eu só existo porque 1.316 anos antes passou a existir essa ficção que é o Rio de Janeiro. Há cerca de dois anos e meio, em homenagem, desagravo, protesto, desesperança ou o que fosse, escrevi este poema, chamado "Confissão no Ônibus":

Rio, invenção dos cariocas,
faz silêncio, Rio,
embora seja impossível
ir embora.

Rio, eu finjo que assimilo
a página 158 de um livro,
mas estou cansado e desaliviado,
tudo sem crer nos evangelhos
nem nos panfletos amarelos
com letras vermelhas, verdes,
prometendo gozo financeiro
e sexual.

Rio, lugares-comuns de horror e fascínio,
cheio de gente que não sabe
se é infeliz, se é contaminada,
se tem filho viciado, se tem filho,
se faz escolhas e
se Deus é pai ou filho das criaturas.

Rio, minha maior pretensão poética
até agora, e até o dia
que me existir a entidade "carioca".