quarta-feira, setembro 12, 2012

"Memórias...", capítulo 20

CAP.20 - PERDOAR É SUÍNO


Em mais uma tragédia recente, mais uma família perdeu um pai de forma estúpida, absolutamente revoltante. Trata-se do assassinato de um senhor trabalhador e querido por muitos - e que, ironicamente para nossas memórias, era também pastor de uma igrejinha evangélica. O homem foi morto por adolescentes que, além do próprio assassinato em si, tiveram a desfaçatez de difamar o sujeito, dizendo que o mesmo teria tentado violentar uma das jovens delinquentes - o que ficou evidenciado como falso pela polícia. Morreu por motivo banal; mataram (latrocínio) como quem toma um copo d'água.


Pois bem: os filhos do sujeito morto, ao serem entrevistados logo após o ocorrido, disseram que já haviam perdoado os jovens homicidas e que queriam conversar com os mesmos. "Que gesto nobre, que grandeza", dirão alguns, mas um deles não será quem vos fala. Eu digo sem titubear que, no afã de demonstrarem sua religiosidade ou o que interpretam da mesma, os familiares do pastor desrespeitaram profundamente a memória do falecido e a própria humanidade deles - que é capaz de perdoar, sem dúvida, mas também (e antes disso) de se indignar e rechaçar quem desdenha da vida alheia como fizeram aqueles moleques. O perdão deles é falso ou estúpido, se não os dois.


O leitor hipotético dirá, talvez, que não tenho a 'nobreza' daqueles filhos. Bem, eu direi que aquilo não é nobreza, mas estupidez, ou pior, uma profunda desonestidade de sentimentos. Perdoar seria doar mais, segundo me ensinaram no 'Reino'; seria cessar de odiar, segundo alguns filósofos. Mas é óbvio que pressupõe ofensa, dor, violência, revolta, antes de uma eventual superação. Como esses filhos, antes mesmo de exprimirem esses sentimentos tão humanos quanto a benevolência, apressam-se a arrotar 'perdão' àqueles que, além de matar seu pai, sequer demonstraram arrependimento ou remorso? Que tipo de lavagem cerebral os leva a isso?


O cristianismo pode levar a isso - no caso desses filhos, sem dúvida falou mais alto o mandamento do perdão, embora um tanto distorcido, como veremos. O mais absurdo é que se trata de um mandamento que o próprio Senhor ignora solenemente e pisa em cima. O perdão do deus cristão, e de seu filho-ele-mesmo, quando ocorre, é quase sempre e em última instância restrito, condicional, até mesmo aleatório. Esses 'perdoadores' tiveram mais do que a petulância de fazer algo que nem deus faz - tiveram a estultícia de negarem a si mesmos o direito de se indignar com um ato torpe de jovens moralmente deformados.


Lembre-se, leitor, antes de eventualmente continuar pasmo com minha falta de magnificência: apenas na cruz o 'filho de deus' rogou por um perdão genérico e sem contrapartida - mas mesmo assim diferenciou um ladrão sarcástico de outro que o bajulava. Os ensinamentos de cristo e seu deus falam claramente de perdoar quando te pedirem perdão (o famoso 'setenta vezes sete'). E nisso há que se reconhecer inteligência: por que vou perdoar (ou me esforçar para perdoar) quem está pouco se lixando para o mal que me fez? Rancor, ódio e ira também fazem parte - e deus é o maior exemplo, fulminando pessoas e condenando-as ao inferno por toda a eternidade.


O deus cristão é absolutamente condicional, seletivo, exclusivo (na exata oposição a inclusivo). O deus bíblico é assim. Já no Antigo Testamento o vemos trucidando pessoas inúmeras vezes, muitas destas por motivos banais - como chamar um velhinho de careca (procure a estória de Eliseu) e ser parte de uma aposta entre deus e o diabo (Jó e sua trupe). Apesar da lorota do perdão, vomitada por jesus, no Novo Testamento seguem-se várias barbaridades, e sobra até para uma figueira (sim, uma árvore) que é esturricada pelo homem de Nazaré numa exibiçãozinha para os amigos. Além de raivoso, deus não tem nenhum problema em ser absolutamente desproporcional em seus castigos.


E então voltamos aos estúpidos filhos do pastor: até jesus diria que eles jogaram 'pérolas aos porcos', perdoando (ou dizendo perdoar) quem está rindo de sua dor. Não seguiram sequer o que salta aos olhos no livro que tanto gostam de ler, pois seu deus não perdoou a humanidade e sim sugeriu uma barganha para saciar sua divina sede por sangue. O deus dos filhos do pastor é bem menos condescendente que esses rapazes, e vai além: é implacável mesmo, doido para torturar suas criaturas numa fornalha eterna, mesmo depois de afogá-las num dilúvio. Forjando esse lamentável perdão, os filhos do pastor toleram a intolerância além do ponto, desqualificando a própria vida ao minizarem a morte de seu pai.