domingo, junho 05, 2005

"Fatigado de mais-valia"

Há duas semanas li - não leio sempre - o editorial de O Globo no domingo, chamado "Fazer política". Guardei comigo; estava de saco cheio daqueles chavões e argumentos mistificadores, tinha de escrever sobre isso. É até gozado...se o editorial saísse hoje, ou se fosse republicado, não faria a menor diferença - "oh, pôxa, é bem atual...". Vejamos o primeiro parágrafo:
"O país tem sido bombardeado por denúncias de corrupção e maus costumes políticos. A incidência bem próxima de fatos escandalosos pode dar a impressão de que afundamos no lodo. Mas casos de corrupção que vêm à tona e são apurados, com responsabilização de seus autores, fazem parte do processo democrático."
O início do editorial, como vemos, é um primor de neutralidade e nulidade informativa. Dissessem a mim que se trata de texto escrito em 1986, eu acreditaria sem desconfiar. Mas o que a meu ver vale ressaltar nessa obra de "literatura de apreciação de acontecimentos" é a defesa religiosa do neoliberalismo e uma crítica bem burguesa ao modo petista de governar. Não estou defendendo o PT nem o governo Lula; só considero importante diferenciar os que vêem esse mandato como decepcionante dos que vêem "incoerências", "gestão ineficiente" - para citar termos menos tecnocráticos.
Essa crítica burguesa, de Veja, O Globo, Folha de S.Paulo, Primeira Leitura e tantos outros jornalões e revistões é mesmo instigante. Fala-se de autoritarismo e até stalinismo petista como se as redações dessas empresas fossem uma mar de democracia e interesse público e não o que são - acima da existência de bons e mesmo grandes jornalistas : empresas privadas, criadas para lucrar, quase sempre com um enorme histórico de acordos escusos com Brasília e mesmo com USA. Perguntem aos jornalistas brasileiros se eles não se sentem uma espécie de "proletários com 3º grau". A grande maioria dirá que sim - e afirmo isso embasado por uma interessantíssima reportagem da revista Imprensa, publicada há cerca de três anos, em que é feito um raio-X da profissão no Brasil.
Os "veiculões" também têm acusado Lula & Cia. de hipocrisia, fazendo as vezes de porta-vozes da indignação do povo. "Eles criticavam Fernando Henrique, mas..."; "os brasileiros esperavam mais de Lula, um homem do povo...". Têm toda a razão: o povo esperava mais, a classe média neo-lulista de 2002 também, a intelectualidade esquerdista idem...mas eles mesmos, os "veiculões", bem como os banqueiros, os coronéis da política, os reis da soja...esses não se surpreeenderam, dada toda a articulação/promiscuidade petista para garantir a tão sonhada eleição do metalúrgico pernambucano. Se o coração dessa turminha ficou acelerado, foi de alegria. Mas criticam como se quisessem ver o barbudo raivoso, desagradando a elite! Como é difícil manter a crítica, vomitam pérolas como esse outro parágrafo do editorial citado:
"O PT é um partido moderno; e, desde que chegou ao poder, tem evoluído em matéria de conceitos e práticas. Mas ainda purga alguns vícios de origem, que vêm de suas nascentes marxistas/socialistas(...) No velho quadro mental do marxismo, entretanto, picareta é a própria natureza do que se chamava de 'democracia burguesa' - um sistema que, naquela visão, existia apenas para dar lugar a um outro. Era o tipo de messianismo peculiar às esquerdas, que só recentemente encolheu(...) o processo político existia apenas como pretexto para a 'tomada de poder'. Conquistando o poder, aí sim se pensaria no que fazer com ele..."
Além de apelar para lugares-comuns indefinidos como "moderno", "eficiente' e "construção institucional", talvez supondo que seu leitor já esteja careca de saber, O Globo ofereceu um "primor" de descrição do que é marxismo ou socialismo, sei lá... talvez por dever cívico os Marinho explicaram ao leitor - já familiarizado com outras conceitos (?) como o tal "construção institucional" - o ingênuo e absurdo mundo vermelho ao qual, outrora (?), pertenceu o PT. Está tão 'clara' a aulinha que até um liberal ("honesto", quer dizer, estudioso...) poderia dizer "bem, explicando melhor...". Se o leitor não conhecia a teoria marxista, agora conhece...ainda menos. Ei, "mas peraí", O Globo sonha com "uma proposta nova e original de governo de esquerda"(8º parágrafo). Bem, talvez seja um governo de esquerda tão original, esse ansiado pelos donos de jornais e revistas, que o próprio sentido do termo "esquerda" torne-se sinônimo de "direita" ou do trio "tradição, família e propriedade". O PT talvez possa realmente realizar uma revolução, uma revolução semântica.
No poema "Satélite", Manuel Bandeira confessava estar cheio de ouvir falar da Lua como símbolo do romance água-com-açúcar, como pano de fundo para clichês sentimentais. "Fatigado de mais-valia, amo-te assim: satélite", concluía o poeta. Eu ando fatigado de mistificação da pseudo-teoria política (sim, ideologia) vendida todo dia, toda semana e todo mês nas bancas de jornais. Talvez tenhamos de aprender mais do economês - seja para glorificar Palocci, seja para entender melhor como somos feitos de bobos. Mas o Brasil é um país democrático, a democracia é democrática, o Estado de Direito foi criado para o povo, a democracia não é ficção, não é não, viva a democracia, Palocci Lá em 2010, êeee, blá, blá, blá....pelo menos já posso jogar o editorial no lixo.

Obs.: suaves doses de bom jornalismo:
www.bafafa.com.br
www.carosamigos.com.br