terça-feira, dezembro 27, 2011

"Memórias...", capítulo 11

CAP.11 - UM LUGAR MUITO ESPECIAL

Segundo a doutrina cristã que me foi ensinada (e que é ensinada à esmagadora maioria dos cristãos), Deus criou dois lugares muito especiais para hospedar, respectivamente, os que ele ama e os que ele rejeita (odeia). Como hoje faço - e 'se Deus quiser', continuarei fazendo - parte deste segundo grupo, tecerei breves comentários sobre o lugar a mim destinado.

O prezado leitor já deve estar familiarizado com as características gerais desse lugar para onde vão os rejeitados por Deus: quente, muito quente mesmo; lotado, já que as exigências divinas não são pra qualquer um, muito menos pra um qualquer que seja judeu, muçulmano, budista, sikh, hindu, ateu, homossexual, etc; repleto de sofrimento, 'choro e ranger de dentes'; sem porta de saída. Mas a novidade deste meu relato, se há alguma, reside no malabarismo mental que se faz para convencer uma pobre alma de que o deus cristão: 1 - sequer criou de fato esse lugar para enviar almas; 2 - não é na verdade ele quem envia as almas para lá; e 3 - ele faz de tudo para evitar que as almas terminem por lá. Eu aprendi todas essas verdades no 'Reino', mas sei que não é doutrina exclusiva da minha ex-congregação.

Deus sequer criou este lugar - esse lugar especial seria , na verdade, uma espécie de 'anti-lugar', a 'ausência de Deus', pois já que o Senhor é onipresente (além de onisciente e onipotente) e criador de todo o universo, os perdidos não poderiam mais compartilhar de Sua presença ao morrer. Ao que perguntamos, sem obter resposta: como pode existir um lugar sem deus se deus tudo criou e é onipresente? O próprio sofrimento (físico e psíquico), o calor 'dos diabos', enfim, todas essas propriedades, como poderiam existir independentes do deus criador? Quem faz a manutenção desse lugar, assegurando suas características?

Outra tentativa de resposta é dizer que sim, Deus criou esse lugar tão quentinho e desagradável para punir o bode expiatório preferido da cultura cristã - isto é, Satanás (e seu exército de anjos revoltosos); por tabela, os humanos que se rebelam contra o Senhor também acabam parando lá. Mas isto, além de desmentir de vez a não autoria divina, nos leva diretamente ao problema da segunda afirmação malabarista.

Não é deus quem envia as almas para lá - se o leitor hipotético já assistiu a filmes de gangsters, em algum momento deparou com falas do tipo "você está selando seu próprio destino, Fulano" ou "você não me deixa opção, Beltrano" - e segue uma bala na testa do sujeito que devia dinheiro ao mafioso. A argumentação de quem exime deus do ato de mandar pessoas para o tal lugar é por aí: você é quem escolheu, não foi deus quem quis. Ao que se torna impossível não perguntar: eeeeeeeu? Quem em sã consciência prefere queimar pela eternidade?

É mais que evidente: Deus aperta o gatilho porque quer. Ele poderia perdoar a dívida, dar umas palmadas e um 'se liga, malandro', mandar o devedor limpar a sua sala de mafioso fodão, enfim, a um deus onipotente não faltam opções - e se perguntassem a quem o deve, com certeza não ouviríamos 'oh, sim, me mate'. A metáfora da prova (tipo 'não é o professor quem te reprova, mas seu próprio desempenho') é também descabida aqui: algum professor te condena a uma oitava série por toda a eternidade? O deus cristão admite 'segunda época' ou 'recuperação'?

Além de ser o arquiteto da fornalha eterna, deus é também o despachante. Por quê? Porque ele é deus e faz o que quer! Nada foge a seu controle e vontade. Chegamos então ao último refúgio, à última afirmação:

Deus faz de tudo para evitar o envio das almas - admitamos então que deus criou um lugar de tormentos e envia para lá quem ele quer. Só que há critérios para o envio, logo me dizem: temos uma 'prova da vida', cuja matéria (ou melhor, o gabarito!) é dada pelo próprio criador. Quem aproveitar a ajuda divina, vai passar; os outros, sabemos para onde vão. O conteúdo dessa prova, é claro, está na Bíblia.

Imagine uma prova em que as questões não são claras, a matéria dada foi um amontoado de enigmas e o suposto gabarito está em língua alienígena - pois bem, esta é a prova da vida que deus passou para humanidade, segundo aprendi no 'Reino'; esta é a prova da vida na qual crêem, de modo geral, grande parte dos homens de fé deste mundo. A doutrina cristã te dirá que Deus quer que você passe, desde que aceite que essa prova faz sentido. É possível elaborar questões mais precisas? Dá pra explicar a matéria? Dá pra exigir respostas que façam sentido? 'Não, mas estude e passe'.

Por que nenhum douto cristão consegue explicar, afinal de contas, por que seu deus dificultou tanto as coisas? Além de arquiteto e despachante, o cara ainda faz bico como professor - só que um professor daqueles bem carrascos, doido pra reprovar a turma inteira e ainda dizer: 'que pena...não posso fazer nada, foram vocês que quiseram assim'.

Em tempo: o lugar que Deus teria feito para abrigar os 'justos' após o juízo final, chamado de 'Nova Jerusalém' (vide o livro do Apocalipse), tem medidas específicas, limitadas, incompatíveis com um território que possa abrigar razoavelmente bilhões de pessoas - e já passaram pela Terra cerca de 100 bilhões! Já do outro lugar, cujo nome excusa dizer qual é, não se faz menção nenhuma acerca do tamanho. Talvez isso nos dê uma idéia de quantas almas o deus cristão pretende salvar.

segunda-feira, dezembro 19, 2011

"Memórias...", capítulo 10

CAP.10 - 'A DOR DE NÃO SER ESPECIAL'




Vem chegando a Saturnália, isto é, o Natal - prezado leitor hipotético, sugiro que procure na Wikipédia caso não tenha entendido. Você saberá porque enfeitamos árvores, damos presentes, etc. Talvez você já saiba que não há qualquer evidência de que um Jesus de Nazaré tenha nascido nesta época do ano. De todo modo, agradeço por mais um feriado, porque todos somos 'filhos de deus' (ou ao menos criaturas do cara) e precisamos de uns dias de descanso. Se bem que neste ano caiu de sábado pra domingo...


Quando eu era 'discípulo de Jesus Cristo', comemorava o Natal como qualquer outra criatura imersa na cultura cristã. A única diferença é que eu me considerava espiritualmente autorizado a falar com deus antes da ceia e não achava isso constrangedor: ao contrário, até minha família me apoiava - embora passassem o ano inteiro me chamando de 'Moisés', 'fanático', etc, na hora do rango natalino eu era o cara que puxava conversa com o criador. Fantasiado de sacerdote, usufruía da minha santa recompensa.


O Natal é o símbolo maior do triunfo do cristianismo sobre todas as religiões concorrentes; não é uma época de paz e harmonia, nem um momento de profunda reflexão dos homens. Eu, como talvez você também, achava que o Natal era quando se reacendia uma ponta de esperança na humanidade (esperança de crer em Jesus e ser salvo), mas me enganei. Não há magia alguma, mas apenas a ingenuidade das crianças e os gastos dos adultos, sem contar o consumismo desenfreado de todos nós - mas isto não é exclusividade natalina nem culpa do papai Noel.


Todas as religiões, com suas peculiaridades, consideram-se de algum modo especiais, únicas, mas nenhuma (nem o islã, a meu ver) supera o cristianismo na sua inerente obsessão pela exclusividade do que agrada a deus. Embora o cristianismo, na verdade, não seja especial, o verdadeiro discípulo de Jesus tem que acreditar que carrega consigo a 'boa notícia': alguém supostamente morreu pra salvar a humanidade (salvar deste mesmo alguém, já que este alguém é também o próprio deus criador dessa trama rocambolesca).


É difícil ser um cristão engajado e, ao mesmo tempo, tolerante. Raciocínio muito simples: se minha religião é a religião que agrada a deus, todas as outras desagradam ao Senhor; portanto, preciso rejeitar as religiões divergentes e convencer todos a acreditarem na minha. É claro que isso só podia dar em Cruzadas, Inquisição e tantas outras carnificinas. Jesus teria dito 'eu sou o caminho, a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim' e ordenado seus apóstolos a pregar pelo mundo pois quem não acreditasse na 'boa nova' seria condenado. Como então dizer que os conflitos envolvendo o cristianismo nada tem a ver com a sua mensagem original? "Não vim trazer a paz, mas a espada", afirmam os evangelhos.


Quando um cristão abandona a fé, depara com a dor de não ser especial. No meu caso, como membro da 'Igreja de Cristo Internacional' (ou 'Reino', para os íntimos), houve uma dulpa perda de status: primeiro, eu e meus irmãos percebemos que não éramos especiais em relação às demais igrejas cristãs; depois, eu e os demais apóstatas percebi que a própria mensagem cristã não tem nada que a coloque acima de qualquer outra crença. Há teólogos esforçados, há pastores inflamados, há testemunhos sentimentais...não há, entretanto, qualquer evidência.


No fim das contas, dá-se o conflito entre discursos religiosos (entre os quais, o cristão) que colocam o homem no centro da criação e da história divina, e a ciência revelando fatos que praticamente nos igualam a qualquer outro animal que nasce, cresce, reproduz-se e morre. Temos que escolher o nosso norte - e muitos tentam arduamente conciliar sua esperança metafísica com a honesta crueza dos dados disponíveis. Por isso, somos mesmo especiais.

Feliz Saturnália!

quarta-feira, dezembro 07, 2011

'Memórias...', capítulo 9

CAP.9 - A OBRIGAÇÃO DE TER FÉ


Prezado leitor hipotético, vou direto ao ponto: um dos grandes problemas do cristianismo, o maior a meu ver, é a condenação moral imposta aos que não acreditam (ou não conseguem acreditar) sem ter provas reais do que é apregoado pelos crentes. A dúvida, assim como um monte de outras coisas normais da vida, torna-se 'pecado', o pecado da falta de fé.


O que não falta neste mundo são questões sem resposta. Com o tempo, muitas questões 'misteriosas' tornam-se claras porque a humanidade alcança um meio de respondê-las - vide, por exemplo, várias doenças antes fatais, hoje tranqüilamente tratáveis: a medicina descobriu respostas. Do mesmo modo, em contrapartida, surgem novas perguntas à medida que caminhamos - pois ampliamos nosso conhecimento, mas também nossa ignorância.


Imagine duas pessoas conversando sobre a possibilidade de existirem seres extraterrestres. Não há, até o presente, nenhuma prova concreta disso. Alguns dados são interpretados por algumas pessoas como possíveis indícios; outras consideram essa hipótese pura ficcção. Na própria comunidade científica a questão está totalmente em aberto, embora tenha partidários de ambos os lados. Dessas duas pessoas que conversam, uma acredita que há vida fora da Terra, porque apesar de ainda não termos nenhuma prova, essa pessoa imagina que o universo é grande demais para que só existamos nós, terráqueos; a outra pessoa simplesmente não crê, mas explica que certamente crerá se alguma evidência satisfatória surgir.


Ninguém em sã consciência deveria condenar essa pessoa que não crê, concorda? Ela simplesmente pensa: 'não creio, a não ser que realmente me provem'. Do mesmo modo, o que crê também não deve ser criticado: tem sua esperança, joga com o que não foi descoberto - afinal, há muito o que conhecer ainda. Parece bobagem, neste caso, considerar a crença ou a descrença como uma falha de caráter. Seria rídulo, por exemplo, se o sujeito que acredita em ETs começasse a vociferar contra o cara que não crê em vida extraterrestre.


Pois é...mas, no cristianismo (e não só no cristianismo), a descrença (que se fundamenta no puro e simples fato de não haver provas) é uma terrível falha, o pecado da incredulidade. Embora você não tenha mais do que testemunhos particulares e especulações, tem que acreditar naquele deus, tem que 'aceitar Jesus como senhor e salvador' - pra te salvar do que o próprio Deus te fará caso você raciocine, neste caso, da mesma maneira que seria sensato raciocinar em n situações nesta vida. O próprio cristão que concorda ser normal não acreditar em ETs por não haver provas deve demonstrar sua convicção escandalizando-se com quem não crê no deus dele (mesmo que não haja qualquer prova).


"Tenha fé em Deus", alguém diz. Eu pergunto: isto é uma sugestão ou uma ameaça? Se é apenas uma sugestão, algo que você sente dar sentido à sua vida, respondo com gentileza: obrigado por querer me aconselhar mas, neste caso, não consigo nem vejo por que preciso acreditar em qualquer deus (seja o deus cristão ou qualquer outro); mas é claro que posso estar enganado e alguma prova um dia surgir. Se é uma ameaça ('os incrédulos serão condenados'), esteja certo de que você só me dá mais um bom motivo para não crer. Entre a hipótese de um deus louco, que cobra algo impossível e se ressente injustamente com suas limitadas criaturas, e a hipótese da inexistência de deus, não enxergo razão alguma para abraçar a primeira opção.

O apóstolo Tomé, que queria ver para crer, é uma espécie de anti-exemplo na doutrina cristã; afinal de contas, diz a Bíblia, em alguns dos evangelhos, que ele duvidou da ressurreição de Jesus. Ao ver o Cristo ressuscitado, se arrependeu da sua falta de fé e foi pregar a palavra. Mas quem lê os relatos bíblicos constata de pronto que o apóstolo acreditou quando viu o próprio Filho de Deus na sua frente, com os punhos e pés feridos. Tomé, na verdade, não teve fé, mas uma prova concreta; o mesmo Jesus, que o criticou, satisfez seu impulso racional (e natural) por evidências - impulso que todos temos, mas que a doutrina da fé cristã finge ser não só desnecessário como pecaminoso.

A esperança em algo ainda não comprovado é tremendamente humano e, como questão de foro íntimo, merece respeito ou, no mínimo, tolerância. Mas isto também vale para a descrença ou a dúvida. Infelizmente, não foi o que eu aprendi nem como católico nem como evangélico. "Diz o tolo em seu coração: Deus não existe", afirma a Bíblia num dos Salmos. Lamentável intolerância e tamanha pretensão do salmista. Ele poderia ter contribuído para o bem da humanidade se admitisse: "diz o tolo em seu coração: tenho certeza de que meu Deus existe e todos tem que pensar assim" - este é o verdadeiro salmo que orientou e orienta as guerras 'santas' neste ainda solitário planetinha.