quarta-feira, dezembro 07, 2011

'Memórias...', capítulo 9

CAP.9 - A OBRIGAÇÃO DE TER FÉ


Prezado leitor hipotético, vou direto ao ponto: um dos grandes problemas do cristianismo, o maior a meu ver, é a condenação moral imposta aos que não acreditam (ou não conseguem acreditar) sem ter provas reais do que é apregoado pelos crentes. A dúvida, assim como um monte de outras coisas normais da vida, torna-se 'pecado', o pecado da falta de fé.


O que não falta neste mundo são questões sem resposta. Com o tempo, muitas questões 'misteriosas' tornam-se claras porque a humanidade alcança um meio de respondê-las - vide, por exemplo, várias doenças antes fatais, hoje tranqüilamente tratáveis: a medicina descobriu respostas. Do mesmo modo, em contrapartida, surgem novas perguntas à medida que caminhamos - pois ampliamos nosso conhecimento, mas também nossa ignorância.


Imagine duas pessoas conversando sobre a possibilidade de existirem seres extraterrestres. Não há, até o presente, nenhuma prova concreta disso. Alguns dados são interpretados por algumas pessoas como possíveis indícios; outras consideram essa hipótese pura ficcção. Na própria comunidade científica a questão está totalmente em aberto, embora tenha partidários de ambos os lados. Dessas duas pessoas que conversam, uma acredita que há vida fora da Terra, porque apesar de ainda não termos nenhuma prova, essa pessoa imagina que o universo é grande demais para que só existamos nós, terráqueos; a outra pessoa simplesmente não crê, mas explica que certamente crerá se alguma evidência satisfatória surgir.


Ninguém em sã consciência deveria condenar essa pessoa que não crê, concorda? Ela simplesmente pensa: 'não creio, a não ser que realmente me provem'. Do mesmo modo, o que crê também não deve ser criticado: tem sua esperança, joga com o que não foi descoberto - afinal, há muito o que conhecer ainda. Parece bobagem, neste caso, considerar a crença ou a descrença como uma falha de caráter. Seria rídulo, por exemplo, se o sujeito que acredita em ETs começasse a vociferar contra o cara que não crê em vida extraterrestre.


Pois é...mas, no cristianismo (e não só no cristianismo), a descrença (que se fundamenta no puro e simples fato de não haver provas) é uma terrível falha, o pecado da incredulidade. Embora você não tenha mais do que testemunhos particulares e especulações, tem que acreditar naquele deus, tem que 'aceitar Jesus como senhor e salvador' - pra te salvar do que o próprio Deus te fará caso você raciocine, neste caso, da mesma maneira que seria sensato raciocinar em n situações nesta vida. O próprio cristão que concorda ser normal não acreditar em ETs por não haver provas deve demonstrar sua convicção escandalizando-se com quem não crê no deus dele (mesmo que não haja qualquer prova).


"Tenha fé em Deus", alguém diz. Eu pergunto: isto é uma sugestão ou uma ameaça? Se é apenas uma sugestão, algo que você sente dar sentido à sua vida, respondo com gentileza: obrigado por querer me aconselhar mas, neste caso, não consigo nem vejo por que preciso acreditar em qualquer deus (seja o deus cristão ou qualquer outro); mas é claro que posso estar enganado e alguma prova um dia surgir. Se é uma ameaça ('os incrédulos serão condenados'), esteja certo de que você só me dá mais um bom motivo para não crer. Entre a hipótese de um deus louco, que cobra algo impossível e se ressente injustamente com suas limitadas criaturas, e a hipótese da inexistência de deus, não enxergo razão alguma para abraçar a primeira opção.

O apóstolo Tomé, que queria ver para crer, é uma espécie de anti-exemplo na doutrina cristã; afinal de contas, diz a Bíblia, em alguns dos evangelhos, que ele duvidou da ressurreição de Jesus. Ao ver o Cristo ressuscitado, se arrependeu da sua falta de fé e foi pregar a palavra. Mas quem lê os relatos bíblicos constata de pronto que o apóstolo acreditou quando viu o próprio Filho de Deus na sua frente, com os punhos e pés feridos. Tomé, na verdade, não teve fé, mas uma prova concreta; o mesmo Jesus, que o criticou, satisfez seu impulso racional (e natural) por evidências - impulso que todos temos, mas que a doutrina da fé cristã finge ser não só desnecessário como pecaminoso.

A esperança em algo ainda não comprovado é tremendamente humano e, como questão de foro íntimo, merece respeito ou, no mínimo, tolerância. Mas isto também vale para a descrença ou a dúvida. Infelizmente, não foi o que eu aprendi nem como católico nem como evangélico. "Diz o tolo em seu coração: Deus não existe", afirma a Bíblia num dos Salmos. Lamentável intolerância e tamanha pretensão do salmista. Ele poderia ter contribuído para o bem da humanidade se admitisse: "diz o tolo em seu coração: tenho certeza de que meu Deus existe e todos tem que pensar assim" - este é o verdadeiro salmo que orientou e orienta as guerras 'santas' neste ainda solitário planetinha.


2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Este comentário foi removido pelo autor.

6:09 AM  
Blogger Gudrun said...

"pois ampliamos nosso conhecimento, mas também nossa ignorância." isso é é certo!

o cristianismo não permitir a falta de fé é quase não permitir que sejamos humanos.

é interessante quando passamos a ter fé sem atribuir isso a Deus, mas a nós mesmos.

6:13 AM  

Postar um comentário

<< Home