quinta-feira, setembro 22, 2011

Memórias de um ex-fanático, capítulo 2

Queria deixar claro a você, leitor hipotético, que as minhas memórias de 'ex-salvo' (isto é, 'ex-discípulo') aqui relatadas não são fiéis à 'linha do tempo'. Assim, os fatos deste capítulo 2 que se segue não serão necessariamente anteriores ao futuro capítulo 3 - tampouco é tudo posterior ao capítulo 1. Venho e volto no tempo de acordo com o que me for conveniente. Por falar em conveniência, o relato a seguir é uma breve descrição de uma polissemia muito conveniente para quem precisa manter o controle sobre a vida dos outros.

CAPÍTULO 2- "CONSELHOS"

Durante meus quatro anos e meio como 'discípulo' ouvi muitos 'conselhos', para o bem do meu relacionamento com Deus e manutenção da minha salvação - ganha após o batismo nas águas límpidas da Baía de Guanabara. O problema é que quase sempre eram 'conselhos', com aspas, e não conselhos. Eis a bendita polissemia de que vos falava, pois.

Os conselhos que recebia no 'Reino' - apelido carinhoso de minha igreja - eram quase sempre ordens, às vezes ameaças, outras vezes mera opinião. Antes de ganhar a salvação, achava que a palavra 'conselho' tinha como significado primordial uma opinião/instrução embasada pela experiência de seu interlocutor - tipo: alguém que subiu em árvores a vida inteira pode aconselhar seu filho a como subir também, como evitar quedas, onde segurar, etc. Sendo um conselho, você pode seguir ou não. Mas no 'Reino' eu descobri que este não é o significado de conselho.

Todos os discípulos do Reino tinham à sua disposição, por livre e espontânea imposição, um sujeito ou sujeita chamado 'discipulador'. Seria um tipo de conselheiro...cujos conselhos você tinha de seguir caso não quisesse ser considerado um 'rebelde'. O cara que me convidou teve a genialidade de me dizer que se tratava de 'uma espécie de melhor amigo'. Bem, se seu melhor amigo monitora cada aspecto da sua vida e te convence a concordar com ele lembrando você das conseqüências literalmente infernais da 'desobediência', a definição foi perfeita.

"Deixa eu te mostrar uma escritura" - quando um discípulo ouvia esta frase do seu discipulador, sabia que vinha chumbo grosso. Você seria convencido do seu 'coração duro', encostado na parede pelo espírito de Deus se fosse necessário. Posso viajar nas minhas férias? Posso comprar determinada roupa? Posso ir a um determinado lugar? Posso pensar de uma determinada maneira? Espere o veredito, ou melhor, o conselho do seu 'melhor amigo' - em lugar da experiência, ele tinha algo melhor, o 'Espírito Santo'.

Mas eu também não tinha o Espírito Santo? Sim, irmão, mas a 'natureza humana' é enganosa, doente, má, e Satanás sempre está maquinando uma emboscada à sua fé, tentando te afastar de Deus, e por isso o Senhor te deu alguém para ajudar e orientar. Que bom! Praticamente todas as dúvidas de minha vida acabariam, desde que eu confiasse nas ordens, quer dizer, nos conselhos do meu discipulador. Até hoje me lembro de muitos, como estes:

'Da confissão'

Discipulador - "Irmão, sempre que você estiver tendo pensamentos impuros é importante confessar ao seu discipulador ou a um irmão mais forte na fé. Masturbação, dúvidas, coisas desse tipo. Essa história de 'privacidade' é perigosa...Satanás tenta invadir a nossa mente...nunca fique remoendo pensamentos para si...você pode ficar crítico, ou fraco na fé"
Eu - "Hmmmmfff...amém."

'Dos jogos de azar'

Eu - "É pecado eu jogar na loto, na sena, no jogo de cavalo? É um hábito muito arraigado na minha família..."
Discipulador - "Veja bem, meu irmão...por que eu desperdiçaria meu dinheiro, conseguido graças a Deus, em vícios como estes? A maior riqueza é a salvação, cara! E a gente já tem!"
Eu - "É mesmo..."

'Do baixo astral'

Eu - 'Não estou me sentindo legal pra sair, cara...sei lá, queria ficar um pouco sozinho"
Discipulador - 'Meu irmão, isso é egoísmo! Sozinhos somos muito mais vulneráveis a Satanás. Deixa eu te mostrar uma escritura..."
Eu - "Tudo bem, já vou me arrumar"

'Do caderno'

Eu- "Irmão, ganhei este caderno pra usar na faculdade...é imoral?"
Discipulador - "Hum...essas figuras são sugestivas...Os Skrotinhos...cuidado, irmão"
Eu - "Vou trocar...imaginei que isso não agradava a Deus"

Do ex-irmão

Discipulador - "Evite falar com Fulano...ele caiu da fé e está falando umas coisas..."
Eu - "Mas eu estou firme, irmão! E...quem sabe ele não volta?"
Discipulador - "Não, irmão...ele é perigoso...algumas coisas que ele diz podem contaminar nossa fé"

"Tomara que o conselho seja 'sim'...aí você pode ir visitar seus parentes!". "Se for o conselho do meu discipulador, peço Fulana de Tal em namoro". "Queria ter ido na festa com meus amigos 'do mundo', mas o conselho do meu líder foi 'não'...amém,eu encontro eles outro dia". Por que afinal a gente chamava essas ordens e opiniões de 'conselhos'? Que seu sim seja sim, que seu não seja não...que seu conselho seja um conselho, porra! Mas os líderes e discipuladores apenas seguiam um 'conselho' da cúpula da igreja - compreendi isso quando virei um sublíder e passei a 'discipular' e distribuir 'conselhos' também.

Graças a meus discipuladores (tive uns 6 ou 7 ao longo dos 4 anos e meio de igreja), aprendi sobre quem, quando e como devia namorar (no fim das contas, ninguém); quanto tempo por dia precisava orar e ler a Bíblia para me sentir 'perto de Deus' (1 hora pelo menos); quantas vezes devia estar com meus amigos 'perdidos' (quase nunca se eles não quisessem estudar a Bíblia comigo); quando questionar o pastor e demais autoridades da igreja e duvidar da infalibilidade das escrituras (nunca); até quantas pessoas eu tinha de evangelizar por semana, para não ficar 'fraco na fé' (o número podia variar).

Os 'conselhos' me foram uma espécie de droga. A princípio, o conforto de ter todo o desenho de minha vida já esboçado. Mas quando a minha rebeldia atrapalhava esse plano infalível, eu sentia a devida crise de abstinência, a qual um 'homem de Deus' estaria disposto a resolver me mostrando uma escritura e o fogo do inferno nas entrelinhas. Hoje, totalmente desaconselhado, já me acostumei com as dores nas juntas, náuseas, garganta seca, etc. Alguns já me disseram: 'um dia você vai voltar para o Senhor'. Tal qual um viciado em recuperação, eu penso: "Só mais 24 horas".

"Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Voltaire não duraria um dia no 'Reino'.

1 Comments:

Anonymous Sheva said...

Sim amor,ele não duraria nem um dia, e eu também não. Que bom que vc saiu desse "Reino".
Só mais 24 horas... te apoio.

11:13 AM  

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