'Memórias de um ex-fanático' (1999-2003) - o início
Se eu fosse escrever um livro sobre meu período como crente/evangélico na congregação da qual fiz parte, talvez fosse um título adequado. Recentemente um jornalista, ex-evangélico, lançou um livro chamado 'Ímpio', contando sua história e o que o levou a não crer mais naquilo tudo - ou melhor,como chegou àconclusão de que era tudo uma perda de tempo. Portanto, não seria nenhuma novidade se eu escrevesse as minhas 'Memórias...'.
Mas como não tenho determinação o suficiente, nem creio que haveria grande (nem pequeno) interesse do mercado editorial, basta pra mim ir contando ao leitor hipotético algumas historinhas (reais) desse meu período. Começarei bem do princípio, tendo como meu fio condutor meu ídolo da adolescência - e ainda uma referência: Renato Russo. Você vai entender por quê.
Capítulo 1 - 'Ainda que falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos...continuaria sem entender porra nenhuma'
O cara que me apresentou ao mundo das certezas evangélicas foi 'esperto' - e, sem dúvida, bem treinado por outros tão 'espertos' quanto. Estou me referindo à arte do proselitismo, mais conhecido como 'evangelismo': trazer as almas perdidas para abraçar sua fé salvadora, 'espalhar a palavra'. Naquela igreja, antes de dizer aos jovens que eles vão para o inferno se não acreditarem piamente na sua coletânea de textos da Antiguidade (e, principalmente, nos que fazem sua interpretação e a berram do púlpito daquela igreja), você precisava mostrar que era um cara legal, um 'amigão'. E é nisso que entra Renato Russo, por incrível que possa parecer.
Durante minha adolescência, tímido, baixíssima auto-estima, via em Renato Russo uma espécie de guru. Tinha como norte aquele sujeito franzino como eu, feio como eu achava que era, barbudo como eu queria ser (para parecer mais velho e digno de respeito), inteligente e talentoso (como eu talvez pudesse ter sido mas não sou) - e ainda por cima sendo o grande líder num grupo cheio de caras boa-pinta, conseguindo provocar suspiros das meninas através do que dizia - justamente o contrário de minha vida.
'Monte Castelo' foi a música de meu guru que me levou a, de vez em quando, pegar aquele livro empoeirado que minha mãe deixava aberto na sala - livro conhecido como 'Bíblia Sagrada' - e tentar entender o que afinal aquele livro tinha para me dizer. Renato escreveu a famigerada canção como um mosaico de bonitas citações, entre elas "ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria", trecho da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. Resolvi então ler a bendita carta e outros textos bíblicos.
Aqueles textos me davam algum alento - quando não me enchiam de dúvidas. Mas talvez eu precisasse de alguém que me ensinasse a entender tudo aquilo - o sujeito esperto que me convidaria a 'estudar a Bíblia', é claro. Andando pelo Aterro do Flamengo, num dia ensolarado de final de outono, topei com uma figura que me pareceu um roqueiro meio 'fashion', meio estranho: "sabe que eu já convidei este cara para estudar a Bíblia?", disse o cara se referindo a Renato Russo, estampado na minha camisa preta.
Claro que fiquei curioso - e paguei o preço da minha curiosidade. Descobri, nos encontros e 'estudos' subseqüentes com o cara e o seu pessoal daquela igreja, que estava indo para o inferno e que precisava me arrepender dos meus pecados. Em resumo, meus novos amigos me revelaram que havia um muro entre mim e Deus, que o coração humano estava 'doente demais pra ser curado', que eu precisava confessar minhas 'perversidades' sexuais constrangedoras, que todos os outros credos eram equivocados (quanto mais não crer naquela coletânea de textos antigos), ser batizado, sair espalhando a 'boa notícia', etc (e quanta coisa há nesse etc!). Fiquei muito agradecido, acreditei e obedeci - obedecer não era algo difícil pra mim, e crer me era muito confortável. Mas e Renato Russo?
Num meio onde se exaltava tanto a 'verdade', onde se viva com tanto ardor esta 'verdade', sobravam historinhas mal explicadas e contraditórias sobre meu ídolo. Renato, segundo alguns, teria estudado mesmo a Bíblia, sendo 'desafiado' a anunciar em cadeia nacional que 'abandonava' o homossexualismo - e teria então desistido daquela igreja. Outros diziam que um cara da igreja - que também (nos) chamávamos 'discípulo' -, teria apenas visto Renato em alguma rua do Rio e tentado entrar no seu táxi para convidá-lo a estudar 'a palavra de Deus', convite recusado pelo meu guru, que teria considerado a proposta 'bastante inconveniente'.
Bem, saí da igreja cerca de quatro anos e meio depois, como vocês vão saber, sem descobrir 'a verdade': quem falou com Renato Russo? Ele chegou mesmo a 'estudar' a Bíblia? A única coisa sobre a qual os caras concordavam é que o roqueiro, no fim das contas, teria recusado tornar-se um 'discípulo'. Posso dizer que, mesmo não sendo hoje um ouvinte tão assíduo de Legião Urbana como era naquele tempo, continuo tendo Renato como uma referência - e como fã, sinto orgulho do 'meu guru' ter sido mais forte que eu e não ter entrado nesse hospício da fé.
Mas como não tenho determinação o suficiente, nem creio que haveria grande (nem pequeno) interesse do mercado editorial, basta pra mim ir contando ao leitor hipotético algumas historinhas (reais) desse meu período. Começarei bem do princípio, tendo como meu fio condutor meu ídolo da adolescência - e ainda uma referência: Renato Russo. Você vai entender por quê.
Capítulo 1 - 'Ainda que falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos...continuaria sem entender porra nenhuma'
O cara que me apresentou ao mundo das certezas evangélicas foi 'esperto' - e, sem dúvida, bem treinado por outros tão 'espertos' quanto. Estou me referindo à arte do proselitismo, mais conhecido como 'evangelismo': trazer as almas perdidas para abraçar sua fé salvadora, 'espalhar a palavra'. Naquela igreja, antes de dizer aos jovens que eles vão para o inferno se não acreditarem piamente na sua coletânea de textos da Antiguidade (e, principalmente, nos que fazem sua interpretação e a berram do púlpito daquela igreja), você precisava mostrar que era um cara legal, um 'amigão'. E é nisso que entra Renato Russo, por incrível que possa parecer.
Durante minha adolescência, tímido, baixíssima auto-estima, via em Renato Russo uma espécie de guru. Tinha como norte aquele sujeito franzino como eu, feio como eu achava que era, barbudo como eu queria ser (para parecer mais velho e digno de respeito), inteligente e talentoso (como eu talvez pudesse ter sido mas não sou) - e ainda por cima sendo o grande líder num grupo cheio de caras boa-pinta, conseguindo provocar suspiros das meninas através do que dizia - justamente o contrário de minha vida.
'Monte Castelo' foi a música de meu guru que me levou a, de vez em quando, pegar aquele livro empoeirado que minha mãe deixava aberto na sala - livro conhecido como 'Bíblia Sagrada' - e tentar entender o que afinal aquele livro tinha para me dizer. Renato escreveu a famigerada canção como um mosaico de bonitas citações, entre elas "ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria", trecho da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. Resolvi então ler a bendita carta e outros textos bíblicos.
Aqueles textos me davam algum alento - quando não me enchiam de dúvidas. Mas talvez eu precisasse de alguém que me ensinasse a entender tudo aquilo - o sujeito esperto que me convidaria a 'estudar a Bíblia', é claro. Andando pelo Aterro do Flamengo, num dia ensolarado de final de outono, topei com uma figura que me pareceu um roqueiro meio 'fashion', meio estranho: "sabe que eu já convidei este cara para estudar a Bíblia?", disse o cara se referindo a Renato Russo, estampado na minha camisa preta.
Claro que fiquei curioso - e paguei o preço da minha curiosidade. Descobri, nos encontros e 'estudos' subseqüentes com o cara e o seu pessoal daquela igreja, que estava indo para o inferno e que precisava me arrepender dos meus pecados. Em resumo, meus novos amigos me revelaram que havia um muro entre mim e Deus, que o coração humano estava 'doente demais pra ser curado', que eu precisava confessar minhas 'perversidades' sexuais constrangedoras, que todos os outros credos eram equivocados (quanto mais não crer naquela coletânea de textos antigos), ser batizado, sair espalhando a 'boa notícia', etc (e quanta coisa há nesse etc!). Fiquei muito agradecido, acreditei e obedeci - obedecer não era algo difícil pra mim, e crer me era muito confortável. Mas e Renato Russo?
Num meio onde se exaltava tanto a 'verdade', onde se viva com tanto ardor esta 'verdade', sobravam historinhas mal explicadas e contraditórias sobre meu ídolo. Renato, segundo alguns, teria estudado mesmo a Bíblia, sendo 'desafiado' a anunciar em cadeia nacional que 'abandonava' o homossexualismo - e teria então desistido daquela igreja. Outros diziam que um cara da igreja - que também (nos) chamávamos 'discípulo' -, teria apenas visto Renato em alguma rua do Rio e tentado entrar no seu táxi para convidá-lo a estudar 'a palavra de Deus', convite recusado pelo meu guru, que teria considerado a proposta 'bastante inconveniente'.
Bem, saí da igreja cerca de quatro anos e meio depois, como vocês vão saber, sem descobrir 'a verdade': quem falou com Renato Russo? Ele chegou mesmo a 'estudar' a Bíblia? A única coisa sobre a qual os caras concordavam é que o roqueiro, no fim das contas, teria recusado tornar-se um 'discípulo'. Posso dizer que, mesmo não sendo hoje um ouvinte tão assíduo de Legião Urbana como era naquele tempo, continuo tendo Renato como uma referência - e como fã, sinto orgulho do 'meu guru' ter sido mais forte que eu e não ter entrado nesse hospício da fé.
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