sábado, setembro 10, 2011

Entre Richard Dawkins e Voltaire

Parece estranho e soa um tanto pretensioso, mas muitas vezes é assim mesmo que me sinto. Tratam-se de dois grandes pensadores - o evolucionista inglês Richard Dawkins, nosso contemporâneo; o iluminista francês Voltaire, ícone do século XVIII. Não obstante o inevitável esbarrão no anacronismo da comparação, diríamos que em muitos aspectos - provavelmente na maioria - o pensamento dos dois é bastante convergente - como na exaltação do conhecimento como propulsor da humanidade e no desprezo pelos fanatismos. Mas é num ponto bem específico, e bastante delicado, que oponho aqui, neste arremedo de ensaio, a visão de mundo de Dawkins e Voltaire: o valor da crença em Deus.

O pensador francês teria sido, segundo algumas opiniões, um ateu posteriormente 'convertido'. Não tenho conhecimento suficiente para avaliar isso, mas suas obras - como 'Cândido', 'Deus e os Homens' e diversos verbetes do seu 'Dicionário Filosófico' - deixam fortíssimas evidências de sua crença num Deus acima de qualquer religião, bem como sua defesa da necessidade moral de se crer nesse Deus.

Com a mesma intensidade que execrava o fanatismo religioso e a intolerância dos que se julgam detentores da verdade absoluta, Voltaire via o ateísmo como um lamentável erro de raciocínio. O iluminista tinha a convicção de que uma sociedade descrente estaria fadada ao fracasso, uma vez que a crença num Criador justo - que pune os maus e recompensa os bons -, constituiria o alicerce de qualquer nação virtuosa e respeitadora das leis e dos direitos.

Voltaire vê o ateísmo como um equívoco muitas vezes decorrente do ensino de más doutrinas religiosas - que teriam como conseqüência a revolta dos homens contra a fé num Deus verdadeiro, por confundí-lo com os falsos deuses apregoados por fanáticos e 'velhacos' aproveitadores (e nisto não poupa críticas ao cristianismo e a muitas outras religiões). Embora condene a peseguição aos ateus e até os veja em melhor situação que os fanáticos, o pensador francês reitera sua reprovação à descrença.

Uma outra característica relevante do teísmo de Voltaire (pra mim é teísmo e não deísmo, mas isso é outra história) consiste no caráter (a meu ver) utilitarista de sua crença, isto é: em dados momentos, o pensador parece defender, acima da crença em Deus, a crença na necessidade prática dessa crença (!) para a sociedade. Não à toa, teria dito: 'se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo'.

Já Dawkins, de quem li muito menos que Voltaire (mas o suficiente no que tange à questão da religião), além de ateu, é ateu militante: está convicto de que, ao contrário de Voltaire, a crença em Deus não contribui em nada para o avanço de qualquer sociedade - ao contrário, traz obscurantismo, intolerância, enfim, atraso.

Dawkins entende que todos os sistemas religiosos vigentes são ou perniciosos, ou absolutamente inócuos. Assim como Voltaire, ataca pesadamente os fundamentalismos monoteístas e as 'verdades' dos livros religiosos como a Bíblia e o Alcorão. Mas vai muito além do pensador francês e a ele se contrapõe, defendendo o ateísmo como a posição mais lúcida que qualquer ser humano esclarecido pode assumir.

O teísmo virtuoso e tolerante defendido por Voltaire, para Dawkins, é desnecessário - ou melhor, uma perda de tempo: a moralidade do homem pode e deve se calcar apenas no seu humanismo esclarecido, tendo como auxílio os esclarecimentos trazidos pelas ciências.

Por que então me encontro 'no meio' dessas duas posições? Bem, eu fui religioso durante vários anos. Quando adolescente, mesmo se não ia à missa, rezava e pedia perdão a Deus por meus pecados - tipo se masturbar no banheiro, ou contar uma mentirinha para minha mãe. Aos 18 tornei-me evangélico, daqueles de 'evangelizar' em tudo quanto é canto e crer que todos os que não compratilhavam da minha fé iriam para o inferno. Aos 23, tornei-me o que sou hoje: um ateu agnóstico - não creio em Deus nem na possibilidade de se comprovar sua existência ou inexistência.

Voltaire tenta me convecer do impossível: que a razão pode comprovar a existência de Deus, uma peleja de séculos, da qual Tomás de Aquino, Descartes e vários outros participaram bravamente, mas não foram capazes de vencer. Todos estes supostos argumentos 'defnitivos', tipo o da 'causa final' ou 'primeiro motor', são bem construídos, mas comprovadamente falhos.
O mesmo se aplica ao argumento da necessidade de se crer em Deus (ainda que num Deus 'suprarreligioso') para se resguardar as sociedades. Temos, por um lado, diversos exemplos cotidianos de cidadãos ateus idôneos ou mesmo exemplares; por outro lado, a crença em Deus não tem resultado automaticamente em sociedades mais desenvolvidas, vide o banho de sangue e ignorância em nome de tantos credos.

Ainda que Voltaire retrucasse que as sociedades não crêem nesse Deus 'melhorado' que ele concebe, mas nas tantas e equivocadas doutrinas religiosas, isto não prova absolutamente nada: o homem sempre associou sua crença em Deus (ou em deuses) a deteminado conjunto de práticas - desde um 'selvagem' num rincão da África a um erudito teólogo europeu, todos me darão características muito específicas de sua fé. Uns gostariam de debater por anos; outros, de eliminar todos que discordam deles; mas o teísmo defendido por Voltaire é, definitivamente, uma crença muito minoritária e igualmente sem qualquer garantia.

Por que então, não abraço a visão de mundo do evolucionista Dawkins? Por dois motivos básicos: 1- não tenho a menor convicção de que um ateísmo militante seja o caminho do 'esclarecimento' da humanidade; parece-me tão utópico quanto o 'teísmo ideal' de Voltaire, porém com uma desvantagem: é veladamente 'histérico', beirando a intolerância, como num evangelismo às vaessas. 2- parece-me um neopositivismo, uma versão renovada de um cientificismo que já nos deu provas de ineficácia e até de certa crueldade. Dawkins propõe, no lugar de tantas doutrinas falhas, mais um caminho sem qualquer garantia de sucesso, como se devêssemos perder tempo tentando ensinar aos homens a descrença como salvação.

Embora admire e concorde em diversos pontos com Dawkins e Voltaire, não me sinto confortável e 'resolvido' com nenhum dos dois nesta discussão. Nenhum problema nisso: na verdade, para um descrente como eu, o desconforto honesto da ausência de respostas talvez seja o único caminho a seguir. Qual seria o seu, leitor hipotético?

ps.: uma outra visão de mundo muito, digamos, 'instrutiva', pode ser apreciada por quem se interessa pelas obras de Fritjof Capra (autor de 'Ponto de Mutação', 'A Teia da Vida', etc). Trata-se,a meu ver, de um 'misticismo científico' agradável e bem sintonizado com a questão da ecologia, cada vez mais importante pra nós. Infelizmente, ou felizmente, também não resolve muitas dúvidas.