domingo, outubro 02, 2011

Memórias de um ex-fanático, capítulo 4


CAPÍTULO 4- A 'ELITE INTELECTUAL' DO 'REINO'

Uma revolução que se preze - segundo diversos pensadores ao longo da história - precisa de uma 'elite intelectual' liderando-a, mostrando o caminho para o povo (liderado). Assim foi com a Revolução Americana, com a Revolução Francesa, com a Revolução Comunista...por que não seria com a 'revolução espiritual' que o 'Reino' traria? Nós éramos revolucionários, segundo nossos próprios critérios. E eu tive o privilégio de fazer parte da elite intelectual desta revolução inspirada por Deus: eu era...tchantchantchan! 'Universitário' - com aspas mesmo, porque se tratava da 'célula' mais influente daquela igreja, uma espécie de clã privilegiado.

Por que seríamos revolucionários? Acreditávamos na Bíblia ipsis litteris, tal como um monte de outras seitas evangélicas; desprezávamos manifestações de 'humanismo' questionador, o que também não era novidade nenhuma no protestantismo; temíamos o desejo sexual como 'o diabo foje da cruz', mais uma obviedade entre tantas facções; tínhamos uma hierarquia muito bem definida e autoritária, reprovávamos católicos, judeus, muçulmanos, budistas, etc, nenhuma novidade...então que raio de revolução aquela igreja oferecia para o mundo de pecadores?

Muito simples: havíamos chegado à conclusão de que não só católicos, budistas, judeus, ateus etc estavam afastados de Deus: todas as facções evangélicas também estavam, porque em nenhuma delas, segunda a nossa fria análise bíblica, os crentes viviam como verdadeiros discípulos de Jesus Cristo. Embora tudo aquilo que eles tinham em comum conosco, e que estava na cara de qualquer um que observasse com alguma atenção, concluímos que os outros não eram verdadeiros discípulos, mas apenas 'religiosos', falsos discípulos. Vocês hão de convir que estreitar ainda mais a já tão apertada porta de acesso ao paraíso - reduzindo para algumas dezenas de milhares de 'discípulos' do 'Reino' o número de salvos - era uma atitude revolucionária. Delirante, presunçosa, antipática, tragicômica...mas também revolucionária.

Claro que, além da inspiração divina, os líderes do Reino também precisavam sedimentar sua ideologia salvífica. Cabe observar que essa luz divina brilhou primeiro nos EUA e depois se espalhou pelo mundo pela vontade de Deus e de meia dúzia de sujeitos que provavelmente se achavam a versão melhorada de Tomás de Aquino ou Martinho Lutero. Aquele movimento revolucionário não poderia se desenvolver sem o que, por falta de uma expressão melhor, chamarei de 'produção intelectual'. E era nas universidades, e/ou a partir delas, que estes gênios da Teologia construíam sua revolução espiritual.

Para que ninguém duvide do quanto a estupidez travestida de iluminação é um fenômeno mundial, o Reino tinha núcleos nas melhores universidades do mundo, como MIT, Yale, Oxford, etc. Não seria diferente por aqui: USP, UFRJ, UERJ, UFMG, UFRGS, PUC, sem contar as menos importantes, como a Estácio de Sá, onde me formei em Jornalismo. Tínhamos a árdua missão de mostrar ao mundo que um verdadeiro discípulo do Reino de Deus poderia ser brilhante (missão, cá entre nós, quase impossível), bem como liderar nossos discípulos menos privilegiados intelectualmente.

Dentro da igreja, os universitários eram vistos com admiração e, ao mesmo tempo, antipatia e um certo ressentimento. Os principais líderes eram oriundos de universidades, o que para alguns parecia mero preconceito - o que é compreensível, devo admitir: não é preciso ser bacharel em nada para pregar idiotices. Mas ao nosso marketing religioso, era muito conveniente exibir pessoas com gradução, mestrado e doutorado: nos fazia mais atraentes às almas perdidas de nível superior e de maior poder aquisitivo - que afinal também precisávamos alcançar. Nada como um sectário fanático igual a tantos outros, mas com um belo diploma da USP ou da UFRJ na parede, como poucos nestas paragens.

Evangelizávamos alucinadamente nas universidades; promovíamos bate-papos bíblicos, estudávamos a Palavra com nossos colegas de faculdade, irritávamos, fazíamos rir e chorar a futuros engenheiros, professores, biólogos. Tudo isso sem descuidar das notas, dos trabalhos, e de rivalizar com os outros grupos religiosos estudantis - todos errados, segundo nossa iluminada percepção da realidade e da 'guerra espiritual'. Em nossos encontros nacionais, realizados anualmente (durante o demoníaco carnaval), exibíamos os nossos prodígios e falávamos de política, ciência, salvar o perdido, evitar armadilhas de Satanás, tudo com naturalidade e alegria - espontânea ou não.

Eu seria tremendamente injusto se não reconhecesse que aprendi muito durante aqueles anos. Tantas cobrançaseexpectativas me deixaram calejado e acostumado à pressão, o que não é inútil nesta vida. Conheci algumas pessoas legais e até fiz amizades. Percebo que poderíamos ter sido muito felizes se não quísessemos enfiar tantas 'verdades' goela abaixo de nós mesmos e dos outros. No fim das contas, a educação que recebemos, embora instrumentalizada em prol daquela patética 'revolução', acabou sendo fundamental para a rebeldia de muitos que iriam 'trair a causa', como eu. Tínhamos de equilibrar nossa cegueira religiosa e nossa instrução acima da média - o que resultou, para muitas, na inevitável e sadia (ainda que tardia) conclusão de que não éramos revolucionários, mas apenas tolos instruídos.