segunda-feira, dezembro 19, 2011

"Memórias...", capítulo 10

CAP.10 - 'A DOR DE NÃO SER ESPECIAL'




Vem chegando a Saturnália, isto é, o Natal - prezado leitor hipotético, sugiro que procure na Wikipédia caso não tenha entendido. Você saberá porque enfeitamos árvores, damos presentes, etc. Talvez você já saiba que não há qualquer evidência de que um Jesus de Nazaré tenha nascido nesta época do ano. De todo modo, agradeço por mais um feriado, porque todos somos 'filhos de deus' (ou ao menos criaturas do cara) e precisamos de uns dias de descanso. Se bem que neste ano caiu de sábado pra domingo...


Quando eu era 'discípulo de Jesus Cristo', comemorava o Natal como qualquer outra criatura imersa na cultura cristã. A única diferença é que eu me considerava espiritualmente autorizado a falar com deus antes da ceia e não achava isso constrangedor: ao contrário, até minha família me apoiava - embora passassem o ano inteiro me chamando de 'Moisés', 'fanático', etc, na hora do rango natalino eu era o cara que puxava conversa com o criador. Fantasiado de sacerdote, usufruía da minha santa recompensa.


O Natal é o símbolo maior do triunfo do cristianismo sobre todas as religiões concorrentes; não é uma época de paz e harmonia, nem um momento de profunda reflexão dos homens. Eu, como talvez você também, achava que o Natal era quando se reacendia uma ponta de esperança na humanidade (esperança de crer em Jesus e ser salvo), mas me enganei. Não há magia alguma, mas apenas a ingenuidade das crianças e os gastos dos adultos, sem contar o consumismo desenfreado de todos nós - mas isto não é exclusividade natalina nem culpa do papai Noel.


Todas as religiões, com suas peculiaridades, consideram-se de algum modo especiais, únicas, mas nenhuma (nem o islã, a meu ver) supera o cristianismo na sua inerente obsessão pela exclusividade do que agrada a deus. Embora o cristianismo, na verdade, não seja especial, o verdadeiro discípulo de Jesus tem que acreditar que carrega consigo a 'boa notícia': alguém supostamente morreu pra salvar a humanidade (salvar deste mesmo alguém, já que este alguém é também o próprio deus criador dessa trama rocambolesca).


É difícil ser um cristão engajado e, ao mesmo tempo, tolerante. Raciocínio muito simples: se minha religião é a religião que agrada a deus, todas as outras desagradam ao Senhor; portanto, preciso rejeitar as religiões divergentes e convencer todos a acreditarem na minha. É claro que isso só podia dar em Cruzadas, Inquisição e tantas outras carnificinas. Jesus teria dito 'eu sou o caminho, a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim' e ordenado seus apóstolos a pregar pelo mundo pois quem não acreditasse na 'boa nova' seria condenado. Como então dizer que os conflitos envolvendo o cristianismo nada tem a ver com a sua mensagem original? "Não vim trazer a paz, mas a espada", afirmam os evangelhos.


Quando um cristão abandona a fé, depara com a dor de não ser especial. No meu caso, como membro da 'Igreja de Cristo Internacional' (ou 'Reino', para os íntimos), houve uma dulpa perda de status: primeiro, eu e meus irmãos percebemos que não éramos especiais em relação às demais igrejas cristãs; depois, eu e os demais apóstatas percebi que a própria mensagem cristã não tem nada que a coloque acima de qualquer outra crença. Há teólogos esforçados, há pastores inflamados, há testemunhos sentimentais...não há, entretanto, qualquer evidência.


No fim das contas, dá-se o conflito entre discursos religiosos (entre os quais, o cristão) que colocam o homem no centro da criação e da história divina, e a ciência revelando fatos que praticamente nos igualam a qualquer outro animal que nasce, cresce, reproduz-se e morre. Temos que escolher o nosso norte - e muitos tentam arduamente conciliar sua esperança metafísica com a honesta crueza dos dados disponíveis. Por isso, somos mesmo especiais.

Feliz Saturnália!

2 Comments:

Anonymous Sua esposa said...

Muito bom,vc esta ficando cada vez melhor. nenhuma crença é especial, nem mesmo a minha, o que importa é o quanto ela te toca,ou se vc precisa dela ou não.

6:50 PM  
Blogger Chico Veríssimo said...

O Cristo é uma figura fantástica, o problema são os cristãos... O evangelho morreu na cruz.

3:52 AM  

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