quinta-feira, janeiro 24, 2013

"Memórias...", capítulo 27

CAP. 27 - A VALIOSA VIDA QUE NÃO VALE NADA

"Sou ateu. Li Jean-Paul Sartre e estudei em colégio de padres. Os sacerdotes têm esse poder de nos afastar da religião."


Walmor Chagas (1930-2013)

"Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas, e dizes espírito. Mas que entendes tu por estas palavras?
(...) Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo. Que andas com os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo. Que pensas com a cabeça. Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te luzes suficientes para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma alma?"
Voltaire (1694-1778)


Prestes a saudar com alegria um afilhado que está chegando a este mundo, venho te falar, ironicamente, sobre morte. Há poucos dias um importante ator brasileiro, Walmor Chagas, suicidou-se. Já tinha vivido mais de 82 anos, e suicidou-se. Nos noticiários e debates televisivos, tenta-se chegar à resposta: por que se matou? Seria depressão, amargura, desespero? Independentemente do palpite, fica implícita, nos discursos, uma convicção de que o ato foi drástico, trágico, de que não deveria ter acontecido. Tirar a própria vida, ir ao encontro da morte, é um ato que subverte nosso status quo de seres que fogem o quanto podem da maior certeza de nossas vidas.

Walmor não acreditava em deus, como você pôde ler mais acima - o que naturalmente nos leva à suposição de que não acreditava, tampouco, em vida após à morte. A princípio, o ateísmo do ator pode nos deixar ainda mais embasbacados: para ele seria mesmo o fim, sem qualquer ressalva, sem qualquer possibilidade de continuação. A "cena final", metáfora irresistível. Se fosse religioso, entretanto, qual seria a esperança que este homem cultivaria? A resposta pode variar muito neste mundo repleto de religiões, mas vamos supor que em vez de auxiliá-lo na sua descrença, os sacerdotes da juventude de Walmor o persuadissem a crer no que a imensa maioria de seus compatriotas, em tese, acreditam: como seria?

Tirar a própria vida, para o cristianismo em suas diversas vertentes, é um ato gravíssimo: o pecado de fazer o que só deus teria autoridade para fazer. O espiritismo cristão talvez seja o portador da doutrina mais branda perante os suicidas, e mesmo assim os reprova veementemente, destinando a eles o 'umbral' para que se cumpra, se assim for, uma dramática trajetória rumo à redenção. Para católicos e protestantes em geral, resta ao suicida passar a eternidade no inferno, que, como sabemos, não tem porta de saída. E isto porque, segundo qualquer cristão esclarecido, a vida é "o bem mais valioso dado por deus".

Entenda, prezado leitor hipotético, que sua vida é tão valiosa para deus que ele não hesitará em puní-lo por toda a eternidade - isto é, mantê-lo vivo em tormento eterno - por você ter resolvido que era hora de dar fim a si mesmo. Ninguém em sã consciência se mata por leviandade, e não estar em sã consciência já é miserável o suficiente; todo suicida é ou um herói ou um desesperado, ou ambos. Somos obrigados a vir para a vida e dar nosso jeito, entregues à todo tipo de sofrimento e sem nenhuma explicação razoável do por que viemos. Mas os sacerdotes, como aqueles mesmos com quem Walmor conviveu, dirão que é perfeitamente justo o 'Senhor' nos colocar no labirinto da existência e nos impedir de tentar escapar.

Walmor Chagas tirou a própria vida e, por mais que mintamos a nós mesmos, sabemos que ele tinha todo o direito de fazê-lo; talvez o tenha feito porque, simplesmente, sentiu ter realizado o que era possível em sua vida e não queria ver a si mesmo desaparecendo em frente ao espelho. Tinha muitos admiradores, e também amigos, e certamente também pensou neles todos enquanto, talvez, olhasse uma última foto, bebesse uma última taça de sua bebida favorita, ou apenas desse um último sorriso. Quem o amava, ou ao menos admirava-o como profissional consagrado, sentirá sua falta - mas todos sabem que assim é a vida, "chegar e partir". Muitos padres e pastores negariam à família do ator um último adeus religioso, porque dizem amar e obedecer a um deus que manda criaturas para o inferno. Mas Walmor nunca precisou deles, tampouco do deus deles, e segue vivo no coração de quem o ama.

sábado, janeiro 19, 2013

"Memórias...", capítulo 26

CAP. 26 - DEUS, O CRIADOR DO PRAZER SEXUAL (OU 'ESCRAVOS DE LÓ JOGAVAM CAXANGÁ')


5 Eles chamaram Ló e perguntaram: – Onde estão os homens que entraram na sua casa esta noite? Traga-os aqui fora para nós, pois queremos ter relações com eles.
6 Ló saiu para falar com os homens. Ele fechou bem a porta

7 e disse: – Por favor, meus amigos, não cometam esse crime!

8 Prestem atenção! Tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las aqui fora para vocês. Façam com elas o que quiserem. Porém não façam nada com esses homens, pois são meus hóspedes, e eu tenho o dever de protegê-los.

Gênesis, cap.19, versículos 5-8. Obs.: Ló é o 'mocinho' da estória.


O tema 'sexo' tem tudo a ver com o cristianismo, ainda mais quando se aproxima aquela festa pecaminosa na qual os perdidos se esbaldam com imoralidade e lascívia ouvindo aquele ritmo que nos remete àquelas práticas abomináveis também conhecidas como 'religiões afro-brasileiras'. Como alguém que vivenciou intensamente a sexualidade evangélica no 'Reino', posso afirmar que embora duvide do título deste capítulo, não tenho dúvidas de que o personagem supracitado é pelo menos um dos co-autores da repressão sexual, também chamada por muitos de 'pureza'.

Tenho para mim que a obsessão com a 'pureza', além de ser mais uma forma de controlar os fiéis, deve constituir uma importante fonte de excitação para pastores, padres e outros líderes religiosos do cristianismo (não só do cristianismo, mas lembre-se de que escrevo memórias). Era, sem dúvida, a maior obsessão da minha ex-congregação; chuto que superava a própria obsessão em ter mais ovelhas no rebanho. Quando você estudava a bíblia para cumprir o trajeto para a salvação, tinha de confessar todos os seus pecados sexuais, de ação e pensamento - sexo fora do casamento, masturbação, homossexualismo, fetiches, vontade de comer a colega de trabalho, etc. Uma vez parte da igreja, o indivíduo continuava sendo 'aconselhado' a desencavar todos os seus desejos, para o escrutínio de seus líderes.

Procure na internet, leitor hipotético, por conselhos sexuais de pastores e pastoras, por exemplo. Você encontrará diversas orientações, inclusive do que vale ou não vale entre marido e mulher (por exemplo, muitos condenam o sexo anal). Foi de um site qualquer desses que eu encontrei a expressão que intitula este capítulo. É óbvio que, se há um deus criador de tudo, ele sem dúvida criou o prazer sexual, bem como criou a gonorréia, o HIV, a sífilis e todas as demais doenças venéreas para punir os malditos pecadores que buscam...prazer sexual. Para quem não busca, sobram apenas tétano, febre amarela, ebola, meningite, malária, câncer...enfim, não inveje os promíscuos: o que não falta são moléstias, de todos os tipos.

A pureza cristã é, enfim, este estado de negação dos desejos sexuais, é a 'moralidade' que te faz reprimir tudo que tem na sua cabeça e é parte do que você é, você 'criatura de deus'. E eu não estou falando de estupro, tipo o que o virtuoso Ló sugeriu aos sodomitas; estou falando de coisas que sentimos desde criancinhas, como já sabemos graças à biologia e à psicologia. Mas as ovelhas, ou seja, os fiéis, são estuprados em sua racionalidade por aprender a associar decência com ascetismo; especialmente as mulheres, que são violentadas em sua própria vaidade, chegando ao ponto de usar espécie de 'quase-burcas' em obediência a determinadas congregações.

A 'festa da carne' que mais uma vez se aproxima é também, ou acima de tudo, uma 'festa do espírito' para quem vivencia uma vida mental de repressão católica. No caso do protestantismo, que em geral deplora e se esconde das festividades ou cria simulacros com o devido controle dos pastores, essa libertação momentânea não chega. Para quem aprendeu a desassociar a festa das religiões, ou faz a alegre associação - como a dos discriminados ritos afro -, dá para curtir sem estupros e com prazer.