quinta-feira, janeiro 05, 2012

"Memórias...", capítulo 12

CAP. 12 - SUPERSTIÇÃO É COISA DE CRISTÃO

Entrei o ano de 2012 de nosso senhor adotando uma gata totalmente preta, pretíssima. Uma criatura linda assim era considerada diabólica na Idade Média, e até hoje, para muitos, um símbolo de mau agouro. Parece-me que gato preto realmente dá azar - azar para o próprio bichano, que é discriminado e temido feito um filhote do capeta.

As superstições são inúmeras por este mundo - e muitas são hilárias pelo que são e por como se tornaram: gato preto, leite com manga, número 13, espelho quebrado, guarda-chuva aberto em casa, dar três pulos para São Longuinho, passar por debaixo de uma escada...e tantas outras que fazem parte de nossa cultura ou da cultura alheia. Há muitos religiosos que consideram isso tudo pura idolatria, atitudes de um perdido - vide o nosso cristianismo, sempre na berlinda deste ex-fanático que vos fala.

Não acredito em nenhuma superstição da qual tenho conhecimento, mas não venham me sacanear com o desafio da garota morta do espelho! Sou racionalmente um cético, mas guardo os meus medos infantis - e se visse o que na tradição se considera um fantasma, provavelmente daria um berro, ou ficaria petrificado, em vez de dizer ao suposto espectro "oi, você é uma projeção da minha mente". Mas o gato preto eu acho lindo, o 13 é número de sorte, e passar debaixo da escada só é perigoso para mim se alguém está pintando em cima dela.

O que todo este papo tem a ver com meu período como 'salvo' e 'discípulo de Jesus Cristo'? Na igreja, como disse mais acima, considerávamos as superstições um monte de bobagens, de quem não tem um 'relacionamento com Deus'. Um verdadeiro cristão não teme nem dá importância a nada disso. É que nossas superstições, na verdade, tinham outros nomes: (pedir e dar) conselhos, apoiar os irmãos no púlpito, orar pedindo 'em nome Cristo'.

Sobre os 'conselhos', falei no capítulo 2 destas memórias - eram quase sempre ordens, pitacos, ameaças. Orar pedindo em nome de Jesus Cristo é um hábito muito forte entre os protestantes em geral, seguindo a fala do salvador em alguns Evangelhos: "o que pedires ao Pai, peças em meu nome" porque "ninguém vem ao Pai senão por mim". É por isso que deus não atende as orações judaicas e islâmicas pelo fim do conflito na Palestina, suponho. Deve ter sido o Diabo quem ajudou Gandhi na independência indiana e deu uma força ao Dalai Lama na fuga para o Tibet.

Porém, na minha ex-igreja, o traço mais característico de que acreditávamos em superstições era o irritante e grotesco 'conselho' que recebíamos - e colocávamos em prática - de 'apoiar o irmão que pregava'. Consistia em falar ou mesmo berrar "vamô lá Fulano", "prega meu irmão", "amém", "isso" e expressões semelhantes enquanto o cara discursava do púlpito (O cara, pois as mulheres só podiam pregar para outras mulheres em cultos exclusivos para elas). Já viram filmes de igrejas evangélicas de negros no Mississipi? Era igual, só que sem música da mesma qualidade. E os mais tímidos que se virassem para seguir o 'conselho' e apoiar cheio de vergonha.

Essa prática embaraçosa, por si só ridícula, gerava situações hilárias em alguns momentos. Tinha gente que se engasgava, em dúvida entre um "prega", "amém", "é verdade, Beltrano", e saía "prém", "amrebga", ou apenas "éééé". Havia os que berravam enquanto o pregador bebia um gole d'água, mais parecendo um impaciente "abre a matraca, meliante" do que apoio ao abençoado palestrante. Mas o supra sumo do risível era quando o irmão te respondia do púlpito: numa pergunta retórica do pregador, eis que alguém na platéia dizia "boa pergunta, meu irmão" - e o cara devolvia! "É verdade, João das Couves, é uma boa pergunta": as risadas coletivas eram inevitáveis, e o irmão ou irmã virava um ponto vermelho na multidão.

Eu me sentia num misto de estádio de futebol - onde se fala demais, por qualquer bobagem - e consulta coletiva a um fonoaudiólogo. Os irmãos mais 'espirituais', milagrosamente, berravam mais que todo mundo e não ficavam roucos. Já quem vos fala, às vezes arranhava a garganta num mísero "amém". Era necessário fé para acreditar que aquele coral de berros ajudava o pregador; pensando bem, devia ser uma massagem no ego dos caras - nunca saberei, pois felizmente nunca preguei do púlpito para a igreja (minhas idiotices se restringiam ao grupo universitário).

Prezado leitor hipotético, se um dia chegar a você a notícia de que alguém foi expulso do Teatro Municipal carioca por berrar durante o espetáculo, a notícia poderá ter sido sobre mim. É que nunca fui àquele teatro e, pela falta de prática, poderei ser pego berrando "VAMÔ LÁ, MAESTRO", "ISSO, RACHMANINOFF!". Superstição cristã, nada demais.

2 Comments:

Anonymous RicFred said...

Vou comentar aqui, pois no facebook pode ficar constrangedor.
Primeiro: Como vc escreve! Isto é um elogio, e até com uma ponta de inveja – vc tem o q falar, sabe como fazê-lo, e gosta. Eu por outro lado, antes de pensar em me comunicar, fico ensimesmado pensando se vai valer à pena – para mim e/ou para o outro – o q vou dizer, e acabo nunca escrevendo nada...
O seu tema de hoje “SUPERSTIÇÃO É COISA DE CRISTÃO” chamou-me a atenção, pq há algum tempo, gostaria de conversar sobre “superstições”, e não acho ninguém, acho q por preguiça de procurar...
Em minha experiência, creio eu, que o ser humano é um criador de superstições e rituais. Sim, criador não por diletantismo ou por cultura, mas por necessidade visceral, (visceral de vísceras – principalmente intestinos e estômago). O conteúdo do ritual ou da superstição não importa, mas eles são maneiras de organizar e controlar o mundo, frente à percepção do terror, do medo extremo.
Se dou um pulinho para o lado, e me sinto um pouco melhor, isto é incorporado ao ritual. Saindo do pessoal, imagina então, se o eclipse solar passa, quando gritamos o nome de deus – então, estamos fazendo religião e cultura.
Ah, no seu caso, não chamaria de superstição, as exclamações que vc descreve em seu texto, apenas reforço, condicionamento e feedback – a mesma coisa q a torcida faz pelo seu time.

3:40 PM  
Anonymous Ricfred said...

Cara, Vc é meu teologo, vivo, predileto. Me lembra, um tanto assim, pela cor e de sua pele, e pelo gosto da escrita, Machado de Assis. Sim, um Machado da teologia.

Mas vamos ao q interessa: A fé também se alimenta do medo. Por isto aqui vai um lanchinho, ou melhor, uma ceia completa para a sua fé: Trata-se da mini ´serie apparitions. Feita pela BBC, pura ficção, com leves pontadas de possível verdade, é ver para crer: http://bitshare.com/?d=4iftlhzf

4:40 PM  

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