PT faz as pazes com Nelson Rodrigues
Saindo da Central do Brasil nesta manhã, por volta das 07h30, recebo um panfleto vermelho. De um lado está escrito "DIA 13 FOI O DIA DO PATRÃO...DIA 18 É A VEZ DO POVÃO"; do outro lado, anuncia-se o "CANTO DA DEMOCRACIA!", "PELA DEMOCRACIA; CONTRA O GOLPE; EM RESPEITO AO MEU VOTO" e as hashtags "#NÃOAOGOLPE" e "#MEXEUCOMLULAMEXEUCOMIGO". Em letras de menor destaque, a "Frente Brasil Popular" também avisa que vai rolar um "ato festival por mais direitos com grandes nomes da música brasileira". De imediato pensei num dos meus artistas favoritos, o petista ferrenho e semi-recluso Chico Buarque. Mas o que me motivou a escrever nesta hora do almoço, em que normalmente eu "penso na vida pra levar e me calo com a boca de feijão", foi o nada vermelho Nelson Rodrigues, saudoso cronista e dramaturgo. Saudoso e polêmico.
Em 1968, escrevendo sobre a Passeata dos Cem Mil contra a ditadura, Nelson, ferrenho crítico da esquerda (embora não só da esquerda), resolveu polemizar perguntando: "Onde estão os negros?". Numa passeata cheia de gente da classe média, liderada por intelectuais, estudantes e artistas, o cronista ironizou uma suposta ausência do povão e da cor tão recorrente daqueles fora dos estratos mais remediados e instruídos. Obviamente, Nelson sabia que seu recurso retórico era contaminado. Havia alguns negros, havia alguns pobres, talvez até poderiam vistos da janela rodrigueana; mas, acima de tudo, havia pessoas lutando legitimamente e expressando ideias que poderiam ser contrapostas por ideias, não por ataques pessoais como o rótulo de "elite desconectada da realidade e dos anseios populares".
Mais tarde, quando Lula se candidata pela primeira vez a presidente, em 1989, vê-se adversários, especialmente no campo conservador e/ou populista, acusando os apoiadores do PT dos mesmo rótulos deslegitimadores usados outrora por Nelson. Isto porque o PT reunia grande apoio de classes médias urbanas e mais escolarizadas, tendo ainda que cavar espaço com o povão - espaço que, à época, Collor, Maluf e Brizola, dentre outros, sabiam ocupar melhor. No segundo turno contra Collor, Lula recebe o apoio de outro "esquerdista da classe média", Covas, além do já popular Brizola, mas a aliança populista-conservadora em torno do "Caçador de Marajás" que queria proteger os "descamisados" dos "apaniguados" (fora o apoio dos Marinho) teve mais força que a classe média escolarizada que via o país cair no canto do bonitão collorido.
Um dia o dia chegou, e Lula é presidente. Reúne grande apoio (além de seu partido comprar o de deputados do baixo clero fisiológico). Tem êxito e, mesmo com a mancha do Mensalão, se reelege. Caminha para fazer sua sucessora. Tem novamente êxito, mas já sem o mesmo apoio avassalador de 2002, quando todos os candidatos de oposição o apoiaram contra Serra no segundo turno. Multiplicam-se os ex-petistas: uns indo mais à esquerda, outros mais ao centro, todos decepcionados com aquele partido que surgiu encantando amplos segmentos da classe média urbana. Mas o jogo do poder tinha que continuar a ser jogado e eis que Lula e o PT sedimentam a fórmula do sucesso: "nós contra eles", sendo "nós" o bem, os que apoiam Lula e PT, e "eles" o mal, a "elite que é contra o bem do povo". Não podem existir zonas cinzas nesse preto-no-branco, temos a síntese da síntese que explica 500 anos de Brasil.
Dilma é a escolhida como a sucessora desse legado. Com ela, "nós" continuaríamos vencendo "eles". Mas a máscara de competência da sucessora vai escorregando um pouquinho a cada dia, os fatos revelam que o novo Brasil do PT é só mais do mesmo, a esperança que venceu o medo dá lugar ao cinismo e ao fracasso, e "nós" somos um número a cada dia menor - e o pior é que "eles" não só deixaram de nos apoiar como agora vão às ruas contra "nós". Alguém então tem uma ideia: resgata a crônica rodrigueana de 1968 e pergunta agora "onde estão os pobres?". Pergunta e responde: "não estão nas ruas contra nós, quem se opõe é a elite que não quer ver pobre na faculdade ou no aeroporto". Nelson é resgatado com menos destreza literária mas com a mesma contaminação retórica.
De acordo com a polícia, que sempre tende a ser conservadora no cálculo, 3,5 milhões de pessoas foram às ruas no dia 13 de março de 2016. De acordo com os organizadores, que sempre exageram um pouco, foram 6 milhões. Como a verdade deve estar am algum lugar no meio, arredondemos para 4 milhões. Num país de 200 milhões, 2% da população inteira foi às ruas pedir que a presidente saia, além de manifestar profunda antipatia ou desgosto ou sei lá quê contra Lula e PT. Seriam 4 milhões de burgueses ou fascistas da classe média, de acordo com a narrativa lulista-rodrigueana.
Ora, mas se não bastassem os supramencionados furos no roteiro de quem rotula adversários em vez de debater ideias, temos o Datafolha informando que mais de um terço desses burgueses fascistas foi eleitor de Lula e/ou Dilma, bem como que pelo menos um terço desses burgueses fascistas são, no máximo, fascistas pobres, pois ganham no máximo 5 salários mínimos - ou seja, suportam a existência própria e da família neste país em recessão + inflação alta com cerca de 4 mil reais/mês, ou menos, muito menos. Isto aponta para mais de um milhão (quase um milhão e meio) de ex-eleitores petistas e aproximadamente a mesma proporção de gente simplesmente pobre ou mal remediada nas ruas contra Dilma, Lula e PT.
Nelson Rodrigues morreu em 1980, ano do nascimento do PT. Seu filho Nelsinho, que apanhou nos porões da ditadura pela qual o pai nutria simpatia, foi filiado ao PT. Mas o reencontro místico do PT com o mestre dramaturgo se dá pelo discurso, quem diria. Trata-se da "vida como ela é", sem precisar sequer indagar a respeito do que Lula considera 'democracia', 'golpe', 'respeito ao voto' e se ele ouve Chico Buarque ou Michel Teló.