O santo homem e os elefantes
Algumas horas depois da morte de Karol Woytila, ruminei meus pensamentos sobre ele. Falo de todas as lembranças, imagens, adjetivos, a canção "O papa é pop", o ano em que houve missa no Aterro "com mais de um milhão de pessoas", do seu semblante cansado nos últimos anos, daquele "chapéu", de tudo enfim que acreditava ser o próprio João Paulo II. "O papa é direita", dizia entre alguns amigos; "o papa é o chefe de uma garnde farsa religiosa chamada Igreja Católica, uma farsa muito bem arquitetada, uma instituição poderosíssima, autoritaríssima e reacionária", etc. O que ninguém ainda sabe, mas eu já sabia, é que quando via o papa cansado, fisicamente fraco, aparentemente triste, com a mão aparando o rosto cabisbaixo, lembrava às vezes de minha falecida avó paterna, a vovó Alzira. Ela não era exatamente católica; na verdade, parecia crer muito em algo, um tipo de crença que transcende religiões.
Talvez esteja exagerando, mas são lembranças da minha infância. Comparo este homem que se foi com esta mulher que se foi bem antes porque os dois - para a criança e o adolescente que fui, para o recém-adulto que sou - pareciam aguardar alguma resposta divina para os seus anseios, pondo as mãos em seus respectivos rostos já tão velhinhos. E quantos não fazem o mesmo por este mundo? De alguma maneira eles são influentes em minha vida - hoje, a vida de um agnóstico. Talvez tenham simplesmente desaparecido, como minha razão supõe e meu coração teme. Eu não quero desaparecer. O engraçado é que, se de fato desaparecermos, não poderemos dizer "nossa! desapareci!". Nunca iremos constatar nosso desaparecimento. A Nova Jerusalém do Apocalipse bíblico é absurda, irracional, mas confesso que quando vejo algum crente que me desparta verdadeira admiração indo embora dessa vida sou capaz de desejar que esse absurdo, pelo menos para aquela alma, se concretize.
Mas o assunto é mesmo o desaparecimento do papa. Quem crê em Paraíso ou em Passárgada não se ofenda: para os vivos, pelo menos, a morte de alguém é sempre um desaparecimento. "Pra onde ele foi?". "Existe vida após a morte?". O problema não é falta de resposta, e sim o fato de haver resposta, mas esta ser inverificável por nós enquanto viventes. O papa não falava tanto do Inferno, creio, mas Cristo garantiu que o lugar existe. Para onde estariam indo os donos da grande mídia nacional, essa mídia (a exceção da Record de Macedo) tão católica e espetacular, como pudemos ver no enterro de Woytila e como vemos todo dia? Pra onde foi Roberto Marinho? Para onde irá o judeu Sílvio Santos? O papa terá um sucessor, pode ser até um latino-americano, quem sabe um brasileiro, mas e se João Paulo II desapareceu? E se minha vó desapareceu? Mas o que é desaparecer, diante da memória? E o que é memória , se desapareceremos?
Mas, se vamos desaparecer ou não isso fica para depois. Lembra que o papa é sempre chamado de "Sua Santidade, o papa"? Por que então, a Igreja Católica vai aferir se Woytila foi santo, ou beato? O conceito genuíno de santidade, a idéia elaborada pelo cristianismo primitivo, desapareceu em Roma, talvez no meio dos papéis da burocracia eclesiástica. Antes, qualquer seguidor de cristo era santo; um dia Santa Sé descobriu a propriedade privada da fé: a santidade de poucos, muito poucos. Em breve, então, saberemos se a instituição que se diz portadora das chaves do céu irá nos dizer se o "santo padre" é mesmo santo. Eles não sabem. Nem nós. Só sabemos que João Paulo II "pregou no deserto" contra o capitalismo crente - cruel e cínico, mas jamais ateu - e contra o socialismo ateu - às vezes generoso, mas nunca fiel a Deus. Sim, também sabemos que o papa levou um tiro à queima-roupa, e que o pop não poupa sequer o atirador redimido. Os santos parecem os elefantes que passeiam pelo Aterro outrora visitado pelo papa. Você nunca viu elefantes no Aterro? Pois é, os danados são tão rápidos que sempre arrumam um jeito de se esconder...
1 Comments:
gostei muito do seu blog :)
Postar um comentário
<< Home