A NOITE (E O DIA)
Se eu falar sobre a noite não poderei deixar de falar sobre o dia; afinal, uma só existe por causa do outro - se 'as trevas' reinarem não haverá mais nem dia nem noite, mas alguma coisa escura, muito escura, apenas, e não me venham com astronomia, nem me venham com apartes científicos, pois meu raciocínio é evidente: dia e noite são conceitos, são criações do homem (se é que 'criações do homem' não é mera redundância). Para o Sol, imaginando ser o Sol um ente pensante, tudo é luz, tudo é 'dia' a seu redor.
Hoje à tarde eu estava deitado no meu sofá-cama, quieto em meu minúsculo e acolhedor apartamento, num ângulo em que, pela janela, só via o azul claro do céu; era lindo, me tranqüilizava, e de repente me veio aquela nossa velha história: esse azul-claro é uma ilusão, esse azul-claro vai desaparecer pra sempre quando o Sol deixar de emanar luz. Que grande bobagem! O céu azul é tão verdadeiro e tão ilusório quanto o próprio Sol e as demais estrelas (tantas são as estrelas apagadas que ainda vemos, atrasados no tempo...).
Falar de ilusão, ou de ilusões, é quase como falar sobre o nada - quase: ilusão é inerente à existência (existência do homem, redundância), então porque dizer que não existe, que não é real?
Um dia, conversando com um amigo, ele me falou sobre sua admiração pela noite, ressaltando uma característica: as noites são sempre diferentes. De dia trabalhamos, cumprimos o horário comercial, o horário da escola, abarrotamos as ruas e é tudo tremendamente previsível; na calada da noite, com as ruas vazias, com o rincípio da realidade tão enfraquecido, há muito mais espaço para o inusitado, para o misterioso, para o secreto, para alguma revelação abafada pela luz do Sol. É claro que estamos idealizando, ou generalizando, pois há muitos que cumprem seus rituais mais rotineiros à noite, ganhando a vida, ou morrendo mais. No entanto, como generalizar é necessário, a comparação entre dia e noite e os argumentos do meu amigo são pertinentes.
Mas não posso deixar de contraargumentar a favor do dia, fazendo aqui o que não fiz quando da conversa sobre a noite. Então digo: a noite pode ser mais instigante e misteriosa, porém o dia é mais democrático. Porque de dia (quase) todos temos de transitar; de dia podemos compartilhar a luz do Sol; de dia temos mais chances de encarar nossos preconceitos e de exercitar nossa paciência, nossa generosidade para com os outros; de dia, nossa capacidade de sermo gentis é muito mais testada, ainda que, tantas vezes, com respostas frustrantes. Isto sem falar do mais óbvio, hoje em dia: a violência urbana torna a noite das cidades um território cuja hegemonia é da criminalidade, enquanto os cidadãos buscam o refúgio do lar.
Para finalizar essa divagação sobre dia e noite, tenho em mente a novela 'A morte e a morte de Quincas Berro D'Água', de Jorge Amado, que li há poucos dias. O dia e a noite são cotejados lavando-se em conta a divisão entre 'as pessoas de bem' e os 'vagabundos', a velha dicotomia 'mundo'/'submundo' das grandes cidades. É verdade que estes coexistem dia e noite, mas é à noite que o submundo esfrega sua existência na cara da cidade e dos cidadãos e ri dos horários comerciais e das conveniências. Quincas Berro D'Água - boêmio, vagabundo, beberrão, iconoclasta - é a antítese de si mesmo, Joaquim Soares da Cunha, cidadão exemplar, pai de família, conformado com suas obrigações de 'homem de bem'. Só que esse homem de bem, que na verdade é tremendamente infeliz, se cansou de sua condição e foi viver o princípio do prazer. E é à noite que, triunfalmente, Quincas Berro D'Água rechaça a última tentativa de sua família de enquadrá-lo na condição de homem de bem que tanto o oprimia.
A mim, que sempre me considerei (ou me conformei em ser) uma criatura do dia, cabe concordar com aquele amigo sobre as qualidades da noite, mesmo refugiado em meu pequeno apartamento.
Hoje à tarde eu estava deitado no meu sofá-cama, quieto em meu minúsculo e acolhedor apartamento, num ângulo em que, pela janela, só via o azul claro do céu; era lindo, me tranqüilizava, e de repente me veio aquela nossa velha história: esse azul-claro é uma ilusão, esse azul-claro vai desaparecer pra sempre quando o Sol deixar de emanar luz. Que grande bobagem! O céu azul é tão verdadeiro e tão ilusório quanto o próprio Sol e as demais estrelas (tantas são as estrelas apagadas que ainda vemos, atrasados no tempo...).
Falar de ilusão, ou de ilusões, é quase como falar sobre o nada - quase: ilusão é inerente à existência (existência do homem, redundância), então porque dizer que não existe, que não é real?
Um dia, conversando com um amigo, ele me falou sobre sua admiração pela noite, ressaltando uma característica: as noites são sempre diferentes. De dia trabalhamos, cumprimos o horário comercial, o horário da escola, abarrotamos as ruas e é tudo tremendamente previsível; na calada da noite, com as ruas vazias, com o rincípio da realidade tão enfraquecido, há muito mais espaço para o inusitado, para o misterioso, para o secreto, para alguma revelação abafada pela luz do Sol. É claro que estamos idealizando, ou generalizando, pois há muitos que cumprem seus rituais mais rotineiros à noite, ganhando a vida, ou morrendo mais. No entanto, como generalizar é necessário, a comparação entre dia e noite e os argumentos do meu amigo são pertinentes.
Mas não posso deixar de contraargumentar a favor do dia, fazendo aqui o que não fiz quando da conversa sobre a noite. Então digo: a noite pode ser mais instigante e misteriosa, porém o dia é mais democrático. Porque de dia (quase) todos temos de transitar; de dia podemos compartilhar a luz do Sol; de dia temos mais chances de encarar nossos preconceitos e de exercitar nossa paciência, nossa generosidade para com os outros; de dia, nossa capacidade de sermo gentis é muito mais testada, ainda que, tantas vezes, com respostas frustrantes. Isto sem falar do mais óbvio, hoje em dia: a violência urbana torna a noite das cidades um território cuja hegemonia é da criminalidade, enquanto os cidadãos buscam o refúgio do lar.
Para finalizar essa divagação sobre dia e noite, tenho em mente a novela 'A morte e a morte de Quincas Berro D'Água', de Jorge Amado, que li há poucos dias. O dia e a noite são cotejados lavando-se em conta a divisão entre 'as pessoas de bem' e os 'vagabundos', a velha dicotomia 'mundo'/'submundo' das grandes cidades. É verdade que estes coexistem dia e noite, mas é à noite que o submundo esfrega sua existência na cara da cidade e dos cidadãos e ri dos horários comerciais e das conveniências. Quincas Berro D'Água - boêmio, vagabundo, beberrão, iconoclasta - é a antítese de si mesmo, Joaquim Soares da Cunha, cidadão exemplar, pai de família, conformado com suas obrigações de 'homem de bem'. Só que esse homem de bem, que na verdade é tremendamente infeliz, se cansou de sua condição e foi viver o princípio do prazer. E é à noite que, triunfalmente, Quincas Berro D'Água rechaça a última tentativa de sua família de enquadrá-lo na condição de homem de bem que tanto o oprimia.
A mim, que sempre me considerei (ou me conformei em ser) uma criatura do dia, cabe concordar com aquele amigo sobre as qualidades da noite, mesmo refugiado em meu pequeno apartamento.
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